Monday, June 27, 2016

Napalm Death

Tem duas bandas sobre as quais li nos anos oitenta, em revistas de skate como a Yeah! e a Overall, e virei fã antes mesmo de ouvir, só por causa dos nomes: Sex Pistols e Napalm Death. Eu era garoto, estava começando a aprender inglês e ficava embasbacado. Como alguém tinha coragem de batizar grupos com nomes tão fortes? A primeira vez que ouvi o Never Mind the Bollocks foi inesquecível, porque cultivava expectativas enormes, e sempre me decepcionei ao ter grandes expectativas com algo, menos com o Sex Pistols. Já o Napalm Death atendeu perfeitamente ao que esperava, até porque já tinha uma ideia melhor de como era a música, pois posteriormente li mais um artigo sobre eles, na minha revista de HQ favorita, a Animal, escrito pelo João Gordo. Ele descrevia o som deles e de outras bandas da Earache, a gravadora independente que lançou o Napalm Death, como algo muito mais barulhento do que era conhecido à época, o hoje bem estabelecido grindcore, e ao final do texto afirmava “só sei que liquidificador com gelo também é música”. Quando finalmente consegui ouvir o From Enslavement to Obliteration, já no começo dos anos noventa, era exatamente isso.

Por inúmeras razões, ao longo dos anos e das várias vindas do Napalm ao Brasil, nunca havia visto um show deles. Agora, em 2016, com mais de quarenta anos, finalmente pude reencontrar-me com minhas perspectivas de adolescente e as satisfazê-las completamente. Foi um dos melhores shows que já vi. Como disse meu amigo Daniel Ikuma, foi o equivalente a termos visto o Fugazi nos anos noventa.

Fui de última hora, no próprio domingo do show, para São Paulo, devido a compromissos pessoais. Cheguei no Clash Club exatamente dez minutos antes do show de abertura. Logo encontrei meu amigo Otávio Mazza, o Tatá, que estudou jornalismo comigo na Unesp, no campus de Bauru. Fomos para perto do palco e, depois de várias tentativas frustradas, vi o Test pela primeira vez ao vivo. O duo de grind costuma tocar na rua e já passei perto de shows deles um par de vezes, mas não havia conseguido parar para assistir, mesmo já tento visto várias outras bandas no famigerado palco Test, montado nas ruas de São Paulo durante as Viradas Culturais. Em cima de um palco deu para sacar como ao vivo é uma pancadaria mais impiedosa do que no estúdio, prescindindo mesmo do baixo, com a interação guitarra/bateria exalando ferocidade, mas isto só me fez ter mais vontade vê-los tocando numa calçada, de perto, pois a frieza do público, que só observava, e o palco não correspondiam ao calor arruaceiro da apresentação.

O próximo show foi do Genocídio, tradicional banda de death metal, existente desde 1986. Como nunca acompanhamos a carreira deles com interesse fomos para trás para comprarmos algo para beber, conversarmos e comprarmos discos do Napalm e do Test na banquinha. Deu para sacar que é uma boa banda ao vivo, mas queríamos botar a conversa em dia e foi bom, porque também encontramos meu velho amigo Fernando Punk perto da banquinha, junto com mais dois amigos de Bauru. Essa característica das amizades duradouras e reencontros felizes é um dos maiores prazeres de frequentar shows underground ao longo de décadas.

Findo o show do Genocídio, rumamos para perto do palco. Ia ficar mais para o lado, como no primeiro show, mas o Fernando e a galera de Bauru foram mais para o fundo. O Tatá teve a feliz ideia de irmos ficar exatamente em frente à banda, um pouco atrás das pessoas que estavam grudadas ao palco. Achei que não daria conta, mas não gosto de ficar atrás, por ser mais baixinho. Quando o show começou abriu a roda e como sempre acabamos sendo empurrados mais para frente. Dali não saí mais. Mesmo meio prensado, me diverti demais e consegui pogar um pouco. Não entrei na roda um pouco atrás para não parar lá no fundão e ficar mais difícil de assistir o show com muita gente na frente e optei, por isso mesmo, em não subir no palco desta vez para um stage dive – certeza que pararia longe também. Claro que por isso virava e mexia tinha que segurar alguém que pulava.

Não cultivei expectativa nenhuma sobre o show. Sabia que mudavam o setlist a cada apresentação. O que é ótimo, bem diferente das bandas preguiçosas que pululam por aí. Simplesmente deixei fluir e não me preocupei se iam tocar ou não minhas favoritas. Mas várias delas vieram. Unchallenged Hate, Scum e You Suffer, por exemplo. Essa última tocada de surpresa, sem anúncio. Um segundo só. Quem olhou para trás perdeu. Eu vi. Emocionante. Em Greed Killing o vocalista Barney Greenway apontou o microfone para algumas pessoas que estavam na frente berrar o “When?” do refrão e tive a felicidade de ser uma delas! E eu, que estava gripado, tomando muito remédios para dor de garganta, consegui gritar ao microfone num show do Napalm Death. Nunca nem sonhei com isso e ao mesmo tempo é a realização de um sonho adolescente. Barney é muito simpático e conversava muito com o público e mais ao fim do show vi uma cena muito legal: um cara se aproximou e gritou, em inglês, que um amigo havia perdido o tênis ao subir no palco. Barney pediu para o cara aparecer e mostrar o pé descalço; o sujeito veio lá de trás e o mostrou que estava só de meia, então Barney achou o tênis e o devolveu. Era um clima muito amigável, a despeito da agressividade desmedida do som. Num dos intervalos, gritei para tocarem Nazi Punks Fuck Off, do Dead Kennedys. Barney ouviu e respondeu que era daqui a pouco, só aguardar. Um sujeito ao lado pediu para tocarem Love of my Life, do Queen, de brincadeira, o que provocou risadas em muita gente por perto, inclusive da banda. Nazi Punks Fuck Off veio, eu estava pertinho, foi um atropelo, logo depois de Low  Life, outra versão; a original é do Cryptic Slaughter. Quando o show acabou, curto e grosso, sem bis, eu estava mais disposto do que quando cheguei.
Uma das poucas fotos que tirei do show, pois como estava perto demais do palco fiquei com medo de perder o celular em meio à agitação.
        

Monday, June 20, 2016

U2

Lembro do primeiro CD que ouvi na vida. Talvez o primeiro que vi pessoalmente, mas não tenho muito certeza disso. Meu tio Helinho tinha acabado de voltar dos Estados Unidos, no fim dos anos oitenta, e trouxe na bagagem o War, do U2.  Na minha cabeça de moleque, ali em Botelhos, interior de Minas Gerais, era o contato com o futuro inexorável da música – mas como não sou besta, nunca me desfiz de nenhum vinil meu, sem notar algo à época que hoje me incomoda muito, a falta de graves no som digital, hoje decadente, por assim dizer.
A audição marcou-me mais pelo contato com o objeto CD. Fetichismo da mercadoria, diria Marx, mas fodam-se essas bobagens retóricas, o maravilhamento provocado pelo primeiro contato com novas tecnologias é um dos traços humanos do qual mais gosto. Fora as músicas marcantes que eu já conhecia do rádio – Sunday Bloody Sunday e New Year’s Day – eu achei as outras meio... franzinas. Sem graça. Estou ouvindo-as neste momento e não me lembrava delas. Outro fato que gostei do CD: voltar só nas músicas que gostava era mais fácil do que nas fitas cassetes e nos vinis. Com o passar dos anos, notei como esse era um vício ruim. Tanto que não me lembro das demais músicas de War, que poderiam me encantar se eu tivesse ouvido sem afobamento. Sem falar que notei que eu e alguns amigos referíamos às músicas de vários artistas como a “faixa número tal do CD” ao falarmos de bandas favoritas até meados dos anos noventa, ou seja, não sabíamos o nome de várias músicas das quais gostávamos.
Semana passada queria escrever sobre tudo isso, mas minha avó Arminda, mãe da minha mãe e do meu tio Helinho, faleceu no domingo, 12 de junho de 2016. Quando encontrei meu tio no velório falei para ele de como me lembrava bem de ouvir o CD do U2 na casa dele. Foi a primeira vez que chorei naquele dia.
P.S. Recordo-me que nos anos noventa o U2 processou o Negativland, banda experimental, e a SST Records, gravadora independente, porque a banda batizou um single de U2, ironicamente, usando samples não autorizados. Por isso mantenho somente o nome U2 nesta crônica, sem subtítulo.

Monday, June 06, 2016

Swans

Era a nossa rua. Resolvemos que seria o nosso bairro.
As primeiras exibições de Warriors, os Selvagens da Noite na TV aberta foram um marco histórico para a minha geração. A maioria dos moleques, invocados ou não, queria provar aquele gosto de aventura fora-da-lei do filme. Sem armas, com senso de lealdade e resolvendo desavenças na porrada. As eventuais reprises iam amealhando mais adeptos do “ganguismo” de araque, com o passar dos anos oitenta. Quem não tem senso de aventura não vai entender que isso nada tem a ver com violência gratuita, perda de valores da civilização ocidental e outras asneiras de missivista de jornal provinciano – para citar um ser verdadeiramente pernicioso d’antanho, hoje transmutado nas fileiras de um exército virtual sem peias.
Então montamos a nossa gangue. Fajuta, claro. Nem lembro o nome, se é que tinha. Não tinha um Cisne, o líder do Warriors; nós todos éramos, numa estrutura horizontalizada, por assim dizer. E fomos tocar o terror, a nossa maneira. Ou seja, não fazendo nada, só ficando sentados na esquina, jogando conversa fora e tomando conta do nosso “território”, um conceito tão caro às gangues do filme. Nunca li o livro de Sol Yurick no qual foi baseado o antológico filme de Walter Hill, então não sei se é algo tão importante na trama original, mas imagino que sim. Para nosso bairrismo briguento sem brigas, era importante. Nosso território era aquela rua.
Finalmente, um dia, nossas vítimas vieram ao nosso encontro. Uns molequinhos menores do que nós que moravam na avenida que margeia o bairro, a João Pinheiro. Eles vieram jogar bola justo no nosso “território”. Nós os cercamos. Perguntamos se eles tinham pedido licença para jogar bola lá. Claro que não. Então os mandamos ir embora, pois aquele era nosso território. Fomos ameaçadores o suficiente para eles irem embora mesmo.
No dia seguinte, depois da escola e do almoço, nos sentamos sob a sombra da arvore da esquina. Então o molequinho mais falante apareceu. Sozinho. Desafiador. Com camisa de botão, penteado certinho e uma cara ingênua cheia de verdades. Alguém perguntou o que ele queria. Acho que fui eu.
- Eu conversei com meu pai e ele disse que não existe esse negócio de território!
Nós rimos e o mandamos embora. Ele se foi, obediente. Afinal, era menor que nós e estava sozinho. Assim que ele se afastou, um de nós, creio que o Paulo Augusto, adiantou-se e precaveu-nos.
- Sujou, galera. Acho melhor não ficarmos na rua um tempo, para não dar rolo.
Abandonamos nosso “território” umas semanas e não tocamos mais no assunto quando o reocupamos, sem discutirmos com mais ninguém. O menino não voltou lá com o pai dele. Não teve problema nenhum. Nós éramos mais bundas-moles do que Os Órfãos, a pior gangue do filme.