Monday, July 11, 2016

Fellini, uma crônica

É curioso quando penso hoje a respeito porque os nomes nem se parecem muito. No fim dos anos oitenta, quando eu tinha entre 13 a 15 anos – ou seja, entre 1988 e 1990 –, comecei a gostar de dois grupos que tocavam muito de vez em quando no rádio: Fellini e Defalla. Eram tempos de informações escassas e nada sabia sobre as bandas, a não ser que eram brasileiras, porque cantavam em português. Mas confundia uma com a outra e na minha ingenuidade ainda meio infantil achava que a que tinha uma música chamada Teu Inglês era o Defalla. Só fui desfazer a confusão quando comprei o 3 Lugares Diferentes, vinil do Fellini, em um sebo. Só consegui encontrá-lo em 1991 ou mais provavelmente em 1992, quando comprei muitos discos num sebo da minha cidade, pois muita gente se desfazia de vinis na era do CD, para a minha felicidade. Vinil era algo tão barato e acessível... Justamente o contrário de hoje.
Mais curioso ainda é quando reflito porque Teu Inglês é uma música que me fascinava tanto. Talvez gostasse do sentimento de saudade que a letra passava, mas eu era novo demais para ter tantas saudades. Mais do que isso, noto que somos produtos do nosso tempo. Gosto tanto da sonoridade pós punk porque vários discos do fim dos anos setenta e começo dos anos oitenta estavam saindo no Brasil naquela época, com atraso: Joy Division, PIL, os primeiros do New Order. Não sabia de nada disso, mas escutava no rádio e principalmente em programas de skate na TV, além de bandas como Legião Urbana, U2 e o próprio New Order serem muito populares, preparando meus ouvidos para as sonoridades mais experimentais do gênero. Se não deixo de ser um produto da minha época porque o Fellini que mais me importa é a banda, ressaltando que também amo os filmes do Fellini, devido às memórias da época, não deixo de ter certa satisfação por também não ser exatamente um produto e me encaixar nos padrões de qualquer indústria cultural, mesmo que alternativa: Teu Inglês é única, muito diferente de Rock Europeu, outra música do Fellini que fez certo sucesso à época e tinha forte influência pós punk, mas que só conheci depois. Se algo que não se encaixa nem nos padrões que procuram fugir de padronizações me fascinava quando garoto, é porque estava na senda certa. Minha irmã reparou ontem, quando eu ouvia o vinil, que Teu Inglês tem até alguma brasilidade escondida no ritmo. Alquimia que só me interessaria de verdade muitos e muitos anos depois. Ou seja, a música também preparou meu ouvido, mas para outros experimentos.

Monday, July 04, 2016

Virgin Prunes (conto inspirado em memórias da pré-adolescência)

Os garotos reúnem-se na esquina. A conversa não tem sentido. Discutem se o U2 é da Austrália, dos Estados Unidos ou do Canadá. Todos estão errados, mas têm certeza de que estão certos. Daniel e Marcão, que não eram exatamente chegados, mas meros conhecidos que orbitam em volta de amigos em comum da rua, exaltam-se e chamam-se de burros, ignorantes e por aí vai. Diante das risadas dos outros moleques, decidem-se calar-se, numa trégua tácita.

A conversa toma o rumo das garotas. Elas não ficam mais no bairro. Já têm 14 anos, ficam com outros moleques, todos mais velhos, preferem ir ao centro. A verdadeira preocupação dos que se reúnem na esquina, com idade média de 13 anos, era fazer piadas com Adriano, que era flamenguista, porque o time dele jogava “cu Zico”, além de várias outras infâmias. Todos ali, no entanto, sem exceção, contam histórias de meninas com quem já haviam ficado. Tudo mentira. Daniel é o único que ficou quieto. Somente ele já havia beijado uma menina.

Lá pelas duas da tarde, já com o sol menos assassino, vão jogar bola na rua. Má ideia, pois o sol ainda é inclemente. Aguerridos, suados, jogam a sério, querendo vencer, algo que nunca faziam. Marcão erra a bola e chuta a canela de Daniel, que desaba no chão, gritando exageradamente. Não era pra tanto. Mas já havia uma tensão. Daniel levanta chamando o desafeto de cavalo. Marcão o chama de bichinha. Daniel não deixa por menos.

- Como posso ser, se eu já fiquei com a sua irmã?

Era verdade. Marcão logo intui isto, pois não entendia por que Daniel sempre ficava brincando com os moleques mais novos, de uns dez anos, na porta da sua casa, e ainda assim sempre conversava com sua irmã mais velha.  Num final de tarde, chegando na esquina, viu Daniel saindo de sua casa e ficou intrigado com aquilo. Agora está explicado.

Atracam-se. Esmurram-se na cara sem pena. Não acertam em cheio, sempre pega meio de lado, pois se mexem demais e seguram-se pelas golas das camisas. Forma-se uma rodinha em volta, estimulando-os a saírem mais na pancada ainda. Mal rolam no chão, no entanto, e são separados.

Atônitos, encaram Júnior, que mora em frente e saiu na porta de casa para entender a algazarra. Lutador de kung fu, já maior de idade, grandão, sacana e famoso por meter-se em brigas na escola. Estão suspensos pelas camisas. Júnior ri e o joga-os cada um para um canto. Intimamente, ambos têm certeza que apanharão de Júnior; sabe-se lá o porquê da intervenção.

- Vão embora vocês dois daqui. Vocês não têm idade para sair na porrada não – ordena Júnior, gargalhando.
 
Os olhares curiosos aguçam-se.

Marcão sai sem conseguir conter o choro. Daniel apressa-se a sumir dali, mas não sem antes gritar um “chora mesmo, mariquinha”. Corre e ri. Ao chegar em casa, mete-se logo no banheiro, para a mãe não ver o estado em que está, e toma banho. Os ralados nas pernas e nos braços ardem e as lágrimas confundem-se com a água do chuveiro. Convence-se de que não está chorando.
O nome do conto, embora o conteúdo não fale a respeito, é uma referência ao grupo gótico/pós punk irlandês Virgin Prunes. Na foto, a capa do disco ...If I Die, I Die (1982), aqui reproduzida via licença Creative Commons.