Ela esqueceu de tomar o remédio, mas na verdade esqueceu que havia tomado-o. Dormiu dois dias seguidos, com a porta aberta. Os cachorros que sempre vagabundeavam pela redondeza entraram, comeram toda a comida sobre a mesa, rasgaram o saco com as fotos talvez por achar que também fosse comida, talvez por diversão, e destruíram recordações que iam de
Friday, June 22, 2007
Cromo
Monday, June 11, 2007
O que cair na mão
Lia de tudo, compulsivamente. Lima Barreto, Oscar Wilde, Dan Brown, Paulo Coelho ou auto-ajuda, tanto faz. Não fazia quase nada e quase ninguém passava por ali. Pressionada a ser funcionária pública pela família e pela falta de perspectivas, fez concurso, passou raspando e fica só quase o tempo todo. Disso ela gostava, podia ler sussa. Os turnos de 12 horas, nos quais ela passa madrugadas adentro vigiando escolas periféricas, bagunçaram seu relógio biológico. Ela quase não dorme em casa, nunca dorme em serviço porque morre de medo de ser demitida e ser ainda mais achincalhada em casa. Seus cabelos estão caindo, seu rosto de menina, apesar dos 20 anos nas costas, está se enchendo de manchas senis. Ela não sabe fazer nada a não ser atirar, porém o porte de armas foi cassado à guarda metropolitana. Em dois anos, a única ocorrência que lhe emocionou fora das leituras foi quando dois ladrões entraram em uma creche para roubar a TV e o DVD da brinquedoteca. Ao flagrá-los, surrou-os com a tranca da porta e encerrou-os no banheiro, para que não danificassem nenhum brinquedo. Esse cuidado, a valentia e a presteza garantiram-lhe respeito na corporação e na PM. O processo por cárcere privado foi rapidamente arquivado e a alegação de legítima defesa aceita de antemão na sindicância. Depois disso, a falta de adrenalina tirou graça da leitura. Disseram-lhe tanto que a TV aliena e que ler faz diferença, mas tantos livros depois, ela não se sentia uma pessoa melhor. Estava tão alheia a tudo como sempre foi. Aqueles dois ladrõezinhos fizeram mais pela auto-estima dela do que qualquer Augusto Cury da vida. Ela, que fora sempre tão travada, passou a assistir desenhos e a divertir-se na brinquedoteca toda noite, vivendo finalmente a infância que lhe foi negada na lida doméstica.
Friday, June 08, 2007
Gêmeas
Um ato muito específico para quem a conheceu. Sua mãe fazia exatamente igual. Cruzava os braços e alisava ambos simultaneamente, como estivesse desejando alguém que a acalentasse, mas mantinha-se fechada e afastava a todos. A garota faz exatamente o mesmo. Mais carrancuda, menos amigável. É como se fosse a mãe há quinze anos, mas com um piercing.
Wednesday, June 06, 2007
Bloqueio
Era um grupo de 15 donas-de-casa ajoelhadas, rezando, na escada de mármore branco. Em meio a elas, apenas um homem, desempregado e suando em bicas no sol da uma e meia da tarde. Há duas horas estavam murmurando ininterruptamente cânticos e rezas. No começo dos anos 90 não era moda aparições de imagens de Virgem Maria em vidros embaçados. Matando aula, as duas alças da mochila pesando no ombro esquerdo, o garoto segue indiferente, até que se vê interditado por uma senhora com cara bondosa, implorando para que ele fosse rezar junto. Diante da negativa, ela diz que tem muita pena dele, pois o fim está próximo e o julgamento será minucioso. O garoto observa a cena e pensa por uns dois minutos se tanta reza mudaria algo. Ele se dirige à bilheteria, tapando o ouvido para não ouvir as beatas, e compra o ingresso para o filme pornô cuja sessão está para começar. Dentro, não consegue o que queria, pensando no mau agouro lançado sobre seu desejo. Nunca mais teve uma ereção.
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