Tentando fixar o olhar na árvore que balançava ao vento frente à janela enquanto tinha a impressão que estava vesgueando de sono, ouviu abaixo a porta se abrir, embora não tenha escutado barulho algum no portão. Surpreso, mas compreendendo que as madrugadas passadas em claro estavam saqueando sua concentração, desceu com a garrafa vazia de cerveja na mão, precavendo-se contra o pior. Não era nada demais, apenas o Pai que estava chegando mais cedo, mas um algo pior se descortinou. Bebendo à tarde, está ficando louco?, teve que ouvir. Só estou relaxando um pouco, estou muito ansioso. O Pai saiu da oficina mais cedo para aproveitar o último fim de tarde ensolarado no horário de verão. Encalorado e bem humorado, capitulou e convidou o Filho para mais uma cerveja no quintal. Pai deitou-se na rede e Filho na espreguiçadeira, ambos apenas de bermuda. A conversa preguiçosa sobre virabrequins, carburadores do tempo do onça e clientes sobre os quais nunca ouvira falar e que não o interessavam fizeram o Filho cochilar. Um último gole sozinho e o Pai ligou o rádio. Enquanto pensava se devia abaixar para não acordar o Filho, este despertou com o anúncio dos números da Megasena. Eram exatamente os que ele sempre jogava; levantou entusiasmado. Você fez o jogo para mim, né pai? A cara esbugalhada de espanto alcoólico do Pai entregou na lata que não. Puta que pariu, não jogou? Não jogou, como não? Usei o troquinho para comprar pão. Estou trabalhando demais, demais. Custava fazer a fezinha? Você tá zoando, né? Chegou perto e gritou no ouvido do Pai. Tá zoando, né? Como que fico agora? Pior não fica. A garrafa de cerveja espatifou-se na têmpora do Pai. Chutes no peito, barriga, costas e perna. Ainda buscou a outra garrafa na mesa, dentro da sala, e tacou nele. Errou. Ele mesmo chamou a polícia e entregou-se, arrependido. O Pai não quis dar queixa. Ambos continuam trabalhando como sempre, não tocam no assunto e remoem as frustrações em bares diferentes, quase sempre discutindo futebol.