Thursday, May 30, 2019

Machado

Almoço de negócios. No mais afamado restaurante da cidade. Já um tanto decadente, sequer ainda é tido como o melhor, mas a comida é mais do que palatável. O expatriado empresário paulistano joga conversa fora com os conterrâneos; o acordo está fechado. Demoram-se um pouco mais do que o previsto, mas como a conversa tomara um rumo muito agradável, deixaram-se ficar e atrasaram um pouco a volta para São Paulo. Tudo bem.
O empresário, conhecido como Júnior, perde o timing e começa a aborrecer os visitantes, lamuriando-se de não ser bem aceito pela sociedade local, apesar de ser bem-sucedido.
- As pessoas aqui são muito preconceituosas. É uma bela cidade, com muito potencial, mas é um tantinho provinciana. Sou visto como um forasteiro que não deveria opinar na política local.
Já enfastiado, um engenheiro, mais novo, propõe que não se demorem mais para pegarem a estrada. Ao saírem, se deparam com o protesto dos estudantes do campus local da universidade federal. É 15 de maio de 2019. Um dos visitantes engravatados pergunta, já tendo certeza:
- Tudo estudante de Filosofia, né?
Júnior, desde que se mudou para a pequena cidade, meteu-se a ler tudo sobre ela: revistas antigas, jornais, blogs na internet, diário oficial. Arvora-se mais conhecedor dela do que os historiadores e memorialistas locais. Bem relacionado e extremamente articulado, ganhou um terreno público, avaliado em mais de um milhão, para instalar sua indústria no município. Atribui parte do seu sucesso ao profundo conhecimento sobre a cidade que adotou e que ama como se fosse um rebento. Responde com propriedade:
- Sim, só podia ser.
O único curso de Filosofia da cidade havia sido fechado quatro décadas antes. Os cartazes da manifestação destacavam os trabalhos científicos de pesquisa em Biologia desenvolvidos no campus, além de protestar contra o corte abrupto e arbitrário no orçamento da instituição.
Após escutarem por alto o discurso dos alunos da universidade local, transmitidos por um pequeno amplificador aos transeuntes, eles viram a esquina e Júnior não resiste a fazer sua observação mordaz:
- Quando vejo um desses vagabundos cabeludos percebo que criei bem minha filha. Ela nunca aparecerá com um desses em casa. Até por isso a mandei para uma faculdade particular.
O engravatado mais velho, grisalho e baixinho, carregando uma deslocada mochila nas costas, é um tipo mendaz. Muito aprazível, no afã de agradar, acha por bem fazer um complemento venal:
- E se mesmo assim ela aparecesse com um desses, não é nada que uma Glock não resolva.
O empresário aquiesce com um sorriso satisfeito. Segue-se um pequeno silêncio, que, no entanto, não é incômodo para ninguém.
O engenheiro decide rompê-lo.
- Estive aqui quando era criança, não me lembro bem mais de como era a cidade.
- Está igual, a mesma merda, não muda, só tem uns prédios a mais.
Despendem-se no estacionamento. Até ali havia sido um dia produtivo, estão orgulhosos e esperançosos quanto ao futuro empreendimento conjunto.

Daniel Souza Luz é escritor, jornalista e revisor

Este conto foi publicado no dia 17 de maio de 2019 no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG). Desde dezembro de 2018 que não publicava um novo conto no jornal, este foi o primeiro inédito em quase seis meses; todos os outros que saíram nos primeiros meses do ano foram versões retrabalhadas de contos e minicontos antigos postados originalmente aqui neste blog. Revisei esta versão que estou publicando agora no blog, eliminando pequenos errinhos e repetição de palavras e expressões que deixei desatentamente passar na versão original que saiu no jornal.

Machado foi publicado originalmente na página oito na edição 7037 do Jornal da Cidade.