Esta crônica foi publicada no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 17/07/2021. O título foi sugerido pela Juliana Gandra, que também revisou o texto.
Nesta semana, na segunda-feira (12/07/2021),
faleceu Carlos Eduardo Pereira, dono do sebo Ler e Ouvir, de sequelas da
Covid-19, segundo Roberto Tereziano. Conforme comentei no telejornal Virou
Notícia, da Virando TV - pois substituí nesta semana o jornalista Roni Bispo na
apresentação do jornal -, trata-se de uma vítima da doença que não consta nas estatísticas
oficiais, pois morreu depois de estar em casa e já ser considerado curado. Ou
seja, aquela maldita tabelinha de “recuperados” não contempla os sequelados e
vítimas colaterais da pandemia, que foi tão potencializada por neofascistas
negacionistas e, também, não podemos nos esquecer, por aqueles que têm noção,
mas são coniventes com aglomerações para atender interesses comerciais e
políticos. Neste mesmo Jornal da Cidade, na coluna Aspectos da Literatura
Poços-Caldense, Huendel Viana já contou a história do livreiro Eduardo, ou
seja, de como Carlos Eduardo, conhecido pelos amigos como Carlão, se formou em
Filosofia, frequentou os famosos sebos do centro de São Paulo e trouxe a ideia
para cá. Figura querida, ele era mesmo uma figura. Esses espíritos rebeldes têm
conexões: meu amigo Aran Brandão tem em Bauru uma espécie de loja que nunca vi
similar, a Extinção, que é uma mistura de sebo e brechó. Ele e Carlos Eduardo
têm (tinham) o desprezo pelos horários comerciais: abriam quando queriam, se
quisessem, só à tarde, e fechavam quando desse na telha. A relação de Carlos
Eduardo com os livros, suas outras manias e seu método de precificação já foram
esmiuçados pelo Huendel. Eu, no entanto, tive uma convivência muito diferente
com ele. Sempre busquei discos de vinil no seu sebo e não livros. E ia lá frequentemente
com amigos headbangers, que ficavam fascinados lá quando viam lá discos como o
raríssimo EP Fuck Me Jesus, do grupo de black metal Marduk. Vou poupar os
leitores religiosos dos detalhes da capa. A questão é que era um bando de
metaleiros cabeludos que não compravam porra nenhuma. No máximo, um ou outro
comprava algum disco do Kiss ou algo assim. Carlão ficava irritadíssimo, sempre
nos tratava às patadas e cheguei a vê-lo expulsar um banger da sua loja aos
berros – mas o sujeito não estava conosco, não faço ideia de quem seja. Comigo
ele era um pouco menos hostil, pois virava e mexia eu comprava vinis –
raramente algum de metal, aliás. Várias pérolas da minha coleção vieram do seu
sebo: o primeiro disco das Mercenárias, o 3 Lugares Diferentes do Fellini, a
coletânea New Wave Times, o Midnight Madness and Beyond do grupo britcore GBH,
o inacreditável vinil brasileiro original de Wooly Bully, do Sam the Sham and
the Pharaos, grupo de rock de garagem dos anos sessenta, e inúmeros outros.
Comprei por preços módicos, ou a preço de banana mesmo. Hoje alguns valem
pequenas fortunas. O título desse texto foi uma sugestão da minha namorada,
Juliana Gandra. Tem discos que deixei de lado lá, como o To Mega Therion, do
Celtic Frost, o Where Legend Began, do English Dogs e o Here Comes Everybody,
do The Wake, que hoje com certeza valem centenas de reais. Separei-os, deixei
com ele, na hora de fazer as contas vi que pesariam demais no meu bolso – nunca
me esqueci disso e de quais discos eram. Arrependo-me, podia ter feito uma
forcinha. Além disso, tem discos que adquiri lá e que vendi depois, como um das
Throwing Muses, dos quais me arrependo muito de tê-lo feito. Bem, ao menos
posso ouvi-los online hoje para inspirar-me para esta pequena crônica. Quanto
ao Carlão, quando eu já estava na universidade deixei de ter a má impressão
inicial; uma parente dele que também fez a Unesp Bauru disse-me que ele era
inteligentíssimo e contou-me dos problemas de saúde que ele tinha. Considerei
normal ele ser estressado, ainda mais com os amigos idiotas que eu tinha no
final da adolescência – tanto que nem converso mais com eles. Quando o sebo já
estava na rua Santa Catarina conversei com o Carlão algumas vezes, já em busca
de (uns poucos) livros. Aí ele era outra pessoa, também creio que não se
lembrava mais de mim. Devia ser duro para um homem sofisticado, amante de jazz,
literatura e filosofia, aturar um bando de adolescentes desajustados em busca
de barulho. Ou, pior ainda, que fossem no seu sebo apenas fazer muito barulho
por nada – sei que ele entenderia essa referência.
Daniel Souza Luz é revisor,
jornalista, professor e escritor
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Capa do disco To Mega Therion (1985), do grupo suíço de death/thrash/black metal Celtic Frost. O desenho é do também suíço H.R. Giger, o criador do Alien. |