Monday, April 28, 2008

Ficção científica a curto prazo

É gente demais se espremendo. Sam estranha a expressão, “papagaio de pirata”, a qual nunca tinha ouvido, apesar de já ter adentrado na casa dos 20 anos e de já ter visto outras recepções a candidatos. Assim que o avião com Magalhães desponta por cima dos morros, alguém que estava com seu assessor direto ao celular dispara a metralhadora verbal e todos focalizam o alvo. Assim que ele, o mais bem cotado nestas eleições, desce as escadas, começa o beija-mão que notabilizou as aparições locais do seu pai. Os repórteres atropelam os petistas, novos aliados de Magalhães, que mal chegam perto, para alívio da diretoria da Associação Comercial – todos estão constrangidos com aquele disparate. A imprensa transmite ao vivo e grava declarações de vitória que não respondem a nenhuma pergunta, sejam as sobre o escândalo das contas no Saara Ocidental, sejam as totalmente inócuas.

A estratégia tramada pelo chefe de gabinete logo se revela eficaz: o forte cheiro de bioquerosene faz todos suporem que há um vazamento de combustível. Tão logo se livra dos microfones e câmeras, beneficiado pelo empurra-empurra, Magalhães se deixa levar pela onda humana, sorriso em punho, desbragado mas em guarda. Sobe na 4x4 improvisada em trio elétrico de Tio Tião, o novo-rico da ranicultura orgânica. Sam é carregada para o carro de seu tio, que pretendia partir à frente, mas sai relativamente atrás do cortejo. Os tios gritam, se esgoelam, cortando todos e entrando na contramão perto de curvas apenas para se emparelhar ao lado do carro de Magalhães, que acena irresponsavelmente para eles sem entender nada. Quando quase batem em um velho Tucson que buzina a todos pulmões, Sam definitivamente zanga-se e diz que não adiantará nada morrer antes da hora.

Ao chegarem ao teatro, têm que esperar mais puxação de saco e uma longa palestra entremeada pelos trechos do novo documentário sobre a modernização da gerência do Estado implementada por Magalhães, que permanece estóico, apesar das piadinhas de efeito que solta para deleite da platéia, que tem a frente uma claque bem treinada na arte de forçar o riso com espontaneidade. No camarim, depois de conceder uma entrevista prazerosa para o dono – que tem seu próprio programa – de uma provedora aliada de audiovisual para celulares, Magalhães enfim ouve falar de Sam, e pede para o rapaz entrar. Para sua surpresa, a cadeira de rodas traz uma garota, Samanta. Ela começa a chorar com mais essa confusão. Carismático, ele a acalma, abre a carteira, paga a primeira parcela da sua viagem de tratamento, despede-se com um abraço caloroso e desejando o melhor para ela.

Assim que Sam embarca, seu pai começa o trabalho de convencimento nos sindicatos, uma campanha efetiva e relativamente barata para Magalhães, que definitivamente mantém petistas incômodos à margem. Sam só tem que esperar quatro meses para o pleito, com morfina à vontade. Seus tios a levaram ao consulado em Amsterdã para ela votar, mas ao contrário de toda a família, ela não votou em Magalhães. O que ele pode fazer, matá-la? Finalmente, no dia seguinte, logo após ser anunciada a vitória de Magalhães, a eutanásia é feita às pressas para evitar qualquer contra-ordem e assim ela morre longe do SUS, pelo menos isso.
18/06/2007

Saturday, April 19, 2008

História para matar o tempo

Descendo a rua abaixado para melhorar o coeficiente aerodinâmico, ele não percebeu o ônibus virando a esquina da Aníbal Machado. Morreu por nada, ele não era nenhum ciclista que entraria em competição nem tinha pressa de chegar em casa, estava apenas fazendo graça; infelizmente ninguém estava olhando. Seu primo contou a história no bairro do outro lado do rio. Ser enterrado em caixão fechado é o que deixou a molecada abismada. Ninguém nunca havia imaginado que isso acontecia. A história se tornou lendária mesmo nas gerações seguintes; vinte anos depois era usada pelos pais para tentar controlar as peraltices sobre rodas da molecada. Naquele bairro, ele era alguém, mas não batizou nenhum nome de rua.

Friday, April 18, 2008

1983

Ela me deu apenas o endereço do prédio, sem o número do apartamento. Foi de propósito, com certeza, conhecendo o pendor que ela tem para dificultar tudo. Pensava que ela morava em uma casa até chegar à porta do edifício. Disse para eu passar às duas da tarde, hora em que certamente estaria acordada. Dentro do prédio, Leave me Alone tromba comigo vindo pelo corredor. Subo a escada atravessando a muralha sonora, que vai se tornando mais densa até identificar a fonte: apartamento 7, modificado a canivete para FACT 75, com as ranhuras de “FACT ...5” cheia de lasquinhas secundando o 7 de metal. Bato na porta, mas ela só atende depois que ouço a agulha se levantado e dou uns toquinhos de leve na madeira, como se estivesse fazendo figa para espantar o azar. Nunca a tinha visto de vestido e jamais a imaginaria com uma bata florida. Ela me convida para entrar com um sorriso e um aceno de cabeça, nada mais. “Desculpe-me, acabei de acordar, vou no banheiro. Instantinho”. Olho por um tempo os desenhos em sulfites colados com fitas adesivas na parede, as poesias cabecinhas assinadas por gente que desconheço totalmente e uma história em quadrinhos obscena de ruim desenhada pelo Miltão, o que me desanima de examinar os demais rabiscos que subiam até o teto, às vezes. A varanda da república, famosa, estava ali na minha frente para finalmente conhecê-la. Não tinha nada além de uma rede e umas plantinhas. Observo as pessoas abaixo, correndo pela rua de trás, e uma faxineira limpando o fundo do prédio. Todos correndo, testas enrugadas (aposto), com a exceção de uns velhinhos barrigudos e de chinelo, na porta do bar, desinteressados de tudo e por isso mesmo desinteressantes. Estes são os bons tempos da juventude aos quais me referirei como meus, contemporâneos dos tempos azafamados, acelerando para a morte, de todo mundo ali embaixo? Se este tédio será saudoso, não quero imaginar o que se avizinha com o fim da faculdade, daqui a dois meses. A universidade já é quase uma terra estrangeira, hostil com quem sonha em ficar naquela complacência estagnante e convidativa. Claro, muito neguinho engajado no movimento estudantil acha o que procura, mas eu passo por boa-praça ao dar guarida para eles quando a arara ameaça chalrar. “Voltei”. De shortinho, camiseta e All Star sem meia, cada um de uma cor, melhor assim. Os óculos não estragam nada. Ela deve ter pegado a bata de uma das meninas como pijama. “Achei o livro na biblioteca do centro, acho que salvei o nosso trabalho”. “Que bom”, ela suspira. Não escrevemos nem 15 minutos, chá gelado à mesa. Celly estava faltando no meu currículo escolar. Marijuana na rede e Chico na vitrola, mas ela não relaxou. As meninas devem chegar mais cedo hoje. Daí para o quarto que ela divide com Regina, mas no beliche a cama dela é a de cima. Com pavor de altura, não desempenhei bem até convencê-la que a fazer de pé, no chão, novidade para ambos. O último dia bom dos bons tempos ou o primeiro do resto de nossas vidas, veremos. Em dezembro prometeram uma vaga para mim no escritório do doutor Nogueira e 1984 começou como o pesadelo previsto, duplipensando juízos de valores negativos e petições favoráveis.

Thursday, April 17, 2008

É disso que o povo gosta

O capacete rachado ao meio dava idéia da violência do impacto. Quando o levantaram, a massa encefálica fugiu para o asfalto, finalmente dissipando a fissura. O pó talvez o matasse de qualquer forma. Os demais mototaxistas que meio que fizeram um piquete no local não queriam saber disso, mesmo os que sabiam. O linchamento do caminhoneiro só não foi mais cruel porque a polícia passava por perto justamente para pegar o cafezinho na boca-de-fumo. O obeso senhor foi levado às pressas ao hospital, mas não resistiu. O cinegrafista de um dos programas policiais locais, cujo apresentador garante não ter um pingo de sensacionalismo, registrou tudo isto e também os mototaxistas cercando sua moto para tomar-lhe a câmera, quando finalmente o reforço chegou. O Supermercado do Tio César e o Açougue Coliseu gostaram das inúmeras chamadas para matéria em meio aos seus reclames.

Wednesday, April 16, 2008

Maturidade

Faz tudo para não se queixar. O único modo de conter a agressão verbal é não falar. Passou a manter-se tão calado quanto no serviço ao mesmo tempo em que evita parecer taciturno. Tem funcionado bem. Agora ele passou a ser aquele bom companheiro que também ouve, aliás, que ouve muito. Nunca houve um como ele, ao menos para ela.

É um benefício que ela colheu da experiência dele. Relacionamentos, ele aprendeu, são exatamente iguais a temporadas no presídio. Resignação e bico calado são as senhas para a sobrevivência. Claro que nem tudo é fácil assim. Esses livros de auto-ajuda para casais não funcionam a contento exatamente porque também não existem manuais de auto-ajuda para presos. Às vezes o único modo de não virar mulézinha é socar a fuça de quem está por perto, mas aí as conseqüências são imprevisíveis.

De certo, apenas que o nível de agressão tem que ser zero a maior parte do tempo. Internalizado, passa batido. Boxe e musculação mantêm a harmonia até que elas passam a ter ciúmes de luvas e aparelhos e passam a demandar mais tempo, o que fode tudo. Por enquanto não tem sido assim.

Tuesday, April 15, 2008

Tudo saiu errado

Semanas de estagnação se passaram desde que ele recebeu a boa notícia pelo telefone. E nada do que estava previsto aconteceu. A firma faliu por capricho de um dos sócios, que discutiu com o chefe da Vigilância Sanitária local devido a uma banalidade, como se não houvesse nenhum podre fedendo há quilômetros de distância.

Hostilidade bate, volta e ricocheteia em quem tem uma relação apenas transversal com o fato. Desempregado, mas com mais contas a pagar, devido à precipitação de contar como certo com o que se revelou impraticável, ele teve que apelar.

Com certeza há humilhações piores do que ligar para ela. Não era o que ele sentia no momento. A voz saia abafada e chorosa, lotada de tristeza e entregando toda a insegurança há muito arraigada no que restou da sua personalidade outrora forte. Ser rejeitado por ela também nisso seria mais insuportável, dadas às circunstâncias. No entanto, ela emprestou o dinheiro, não antes sem um incômodo “Eu te avisei”. Perguntou se ela já tinha alguém novo. Não. Não podia aparecer também. O novo apartamento dela foi benzido.