Ela me deu apenas o endereço do prédio, sem o número do apartamento. Foi de propósito, com certeza, conhecendo o pendor que ela tem para dificultar tudo. Pensava que ela morava em uma casa até chegar à porta do edifício. Disse para eu passar às duas da tarde, hora em que certamente estaria acordada. Dentro do prédio, Leave me Alone tromba comigo vindo pelo corredor. Subo a escada atravessando a muralha sonora, que vai se tornando mais densa até identificar a fonte: apartamento 7, modificado a canivete para FACT 75, com as ranhuras de “FACT ...5” cheia de lasquinhas secundando o 7 de metal. Bato na porta, mas ela só atende depois que ouço a agulha se levantado e dou uns toquinhos de leve na madeira, como se estivesse fazendo figa para espantar o azar. Nunca a tinha visto de vestido e jamais a imaginaria com uma bata florida. Ela me convida para entrar com um sorriso e um aceno de cabeça, nada mais. “Desculpe-me, acabei de acordar, vou no banheiro. Instantinho”. Olho por um tempo os desenhos em sulfites colados com fitas adesivas na parede, as poesias cabecinhas assinadas por gente que desconheço totalmente e uma história em quadrinhos obscena de ruim desenhada pelo Miltão, o que me desanima de examinar os demais rabiscos que subiam até o teto, às vezes. A varanda da república, famosa, estava ali na minha frente para finalmente conhecê-la. Não tinha nada além de uma rede e umas plantinhas. Observo as pessoas abaixo, correndo pela rua de trás, e uma faxineira limpando o fundo do prédio. Todos correndo, testas enrugadas (aposto), com a exceção de uns velhinhos barrigudos e de chinelo, na porta do bar, desinteressados de tudo e por isso mesmo desinteressantes. Estes são os bons tempos da juventude aos quais me referirei como meus, contemporâneos dos tempos azafamados, acelerando para a morte, de todo mundo ali embaixo? Se este tédio será saudoso, não quero imaginar o que se avizinha com o fim da faculdade, daqui a dois meses. A universidade já é quase uma terra estrangeira, hostil com quem sonha em ficar naquela complacência estagnante e convidativa. Claro, muito neguinho engajado no movimento estudantil acha o que procura, mas eu passo por boa-praça ao dar guarida para eles quando a arara ameaça chalrar. “Voltei”. De shortinho, camiseta e All Star sem meia, cada um de uma cor, melhor assim. Os óculos não estragam nada. Ela deve ter pegado a bata de uma das meninas como pijama. “Achei o livro na biblioteca do centro, acho que salvei o nosso trabalho”. “Que bom”, ela suspira. Não escrevemos nem 15 minutos, chá gelado à mesa. Celly estava faltando no meu currículo escolar. Marijuana na rede e Chico na vitrola, mas ela não relaxou. As meninas devem chegar mais cedo hoje. Daí para o quarto que ela divide com Regina, mas no beliche a cama dela é a de cima. Com pavor de altura, não desempenhei bem até convencê-la que a fazer de pé, no chão, novidade para ambos. O último dia bom dos bons tempos ou o primeiro do resto de nossas vidas, veremos. Em dezembro prometeram uma vaga para mim no escritório do doutor Nogueira e 1984 começou como o pesadelo previsto, duplipensando juízos de valores negativos e petições favoráveis.
Friday, April 18, 2008
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