A única sala vazia está escura o suficiente. É a menor de todas, portanto tem a grande vantagem de possuir apenas um sofá. Enorme, é verdade. Vinte minutos antes, havia entrado lá procurando um cômodo com mais privacidade, e me deparei com três sujeitos acompanhados por uma menina. Chega, não volto mais sozinho para a casa dos sofás.
Corro para a tenda. Procuro, procuro, acho. A luz negra realça seu vestido branco. Ela joga o cabelo para os lados, braços para cima; ensaia uns passinhos de samba. Drum n’bass brasileiro. Como todo mundo que havia descoberto isto ontem, tinha os quadris duros. Muito neguinho olha para aquele balançar desengonçado e ri de soslaio. O momento é este. A lábia e o requebrado desgastados pelos anos de rotina doméstica ainda hão de funcionar. Aproximo-me, deixo solto meu lado Dudu Nobre, ela sorri.
- Ninguém mais dança assim – grita no meu ouvido.
- Na minha quebrada, ninguém perdeu a manha.
Berro isto três vezes. Vale a pena. Ela começa a rir, a cara enfiada no meu ombro, as mãos apoiadas em meu peito enquanto mexe aqueles tênis brilhantes. Minha impressão de achar uma patricinha ligada no perigo estava certa. Percebi ao apontar meu rosto naquela “pista de dança”. Os bons, velhos e maldosos instintos. O poperô volta a bombar. Ela quer ficar no meio daquele barreiro. Eu não. Ainda agüento três “músicas”. Tsi, tum, tsi, tum.
Desisto, não estou com paciência pra ficar mimando madame criada por FMs e balconistas que a vestem de Cavalera. Olho para a casa, faço menção que vou pra lá com a cabeça, e saio abrindo caminho em meio ao povinho fashion. Chegando perto da janela azul, me viro e só vejo os clubbers boiolas de sempre. Começa a amanhecer. Hora de vazar. Ao encostar-me na parede para descansar um pouco, vejo uma ruiva empurrando uns agroboys. Ela me seguiu.
A porta da frente está trancada. O único jeito de entrar agora é pelo buraco do cachorro da porta de trás. Quando ela engatinha pela portinhola, eu penso na minha adolescência, no banheiro de azulejo rosa, e me pergunto por que nunca fantasiei isto antes.
Agora só havia luzes vermelhas bem fraquinhas no corredor. Os cômodos ficaram insondáveis. O solitário sofá daquele quartinho de empregada foi ocupado. Ela ri do meu desconforto, e, tropeçando nas próprias pernas, arranca uma lanterna da bolsa. Ela gargalha ao apontar o facho para a cozinha. Só dava neguinho berrando “Apaga isto, vaca”. Têm quatro, cinco pessoas por sofá. Todos homens, acho. Subindo correndo as escadas, ela gargalha ainda mais.
Tomo a lanterna de sua mão. Aí ela tem uma idéia pior. Acende a luz de um dos quartos. Ninguém acredita que existiria uma garota tão enxerida assim. Vários casais deitados, sentados, de ponta cabeça, naqueles sofás, e... Toni em cima de um magricela com a cara enfiada
- Apaga a luz agora, o que você está olhando?! – Estou olhando ele fechar o zíper, e agora me sinto duplamente otário.
- Porra Negão, justo você, me fazer este papelão - Toni arfava indignado.
E ela ri alto, mais alto ainda enquanto Toni nos puxa pelos braços através do corredor. Ele nos joga com toda força em um banheiro. Tem um sofá! E nele caímos. Ela me pergunta quem era meu amigo. “Segurança da rave”, é tudo que posso dizer. Seus risos ficam ainda mais histéricos.
Acendo a luz, e contemplo sua boca borrada de batom, maquiagem pesada escorrendo junto ao suor. Faróis acesos. Senhorita Roubada, o que vamos fazer trancados aqui?
- Quer tomar essa pílula azulzinha? Um sorriso sacana é esboçado.
- Não preciso disso.
- Nem eu.
E engole a pílula com água da torneira. Reclama que está com gosto de ferrugem. Digo que desejo experimentar o gostinho. Fazendo-se de desentendida, sugere que eu beba direto da torneira. Deito-a com jeito, e, como diria meu avô, roubo um beijo. Apago a luz. Era a deixa.
Toni e outro segurança entram e acendem a luz. Vingança. É justo. Somos arrastados pra fora da casa. Saio atrás, e não acredito no que ouço:
- Amor, onde você estava?
- Te procurando.
Mesma roupa, mesmo cabelo. É o rapazinho magrela do Toni. Com a minha mina. Abraçando-a. Dois pombinhos. Saem de mãos dadas. Nenhum deles olha pra trás. Toni, ao meu lado, parece mais resignado.
- A vida é assim. Negão... escuta, a galera do bairro, eles não precisam saber...
- Saber do quê? Não sei de nada.
Toni já havia me economizado uns dois meses de salário. Em toda festa que ele trabalhava, eu entrava na faixa. Um tapa na minha nuca, só pra não perder o hábito, e ele sai andando com o gorila camarada dele.
A casa parece tremer, não sei se por causa devido aos graves das caixas de som gigantes ou se... esquece. Não volto lá sozinho.
Tem uns malucos jogando no campinho de futebol society. O negócio é acompanhá-los. De um jeito ou outro, eu pego uma pelada aqui.
Escrevi e reescrevi este conto várias vezes no segundo semestre de 2004 para a revista Ops!, um projeto de final de curso feito por grupo de estudantes de jornalismo, do qual uma ex-namorada fazia parte. Apesar de tê-lo editado em uma versão menor, ainda estava muito extenso e fiz outro, que foi publicado com uma ilustração do escritor Chico Lopes. A versão original deste conto só foi lida pela orientadora e algumas integrantes do grupo, permanecendo inédito.
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