Sunday, September 28, 2008

Não foi por querer

Era deliberado. Não tinha graça, mas ele ria e tentava contaminar todos com as gargalhadas forçadas, só que ninguém o levava a sério (mesmo que isso pareça paradoxal). Ele achava que o pessoal me protegia, pois eu não participava das brincadeiras do escritório, no entanto acho que era por isso mesmo que me respeitavam: eu não zoava ninguém.
Isso só aumentava o despeito do sujeito. Ninguém tinha que ser intocável, na visão dele. Óbvio que ele estava certo, mas não dou a mínima para isso, principalmente quando eu sou o alvo em potencial. Como ele era o saco de pancadas, era como se o grande trunfo que ele poderia alcançar seria justamente deixar de ser o foco das atenções negativas empurrando-me para o picadeiro corporativo que ele ocupava.
A voz dos “ataques preventivos” era muito engraçada. Ele falava com voz de choro, sempre; um velhinho moribundo gemendo enquanto pedia compaixão. A insegurança era patente. No entanto, em situações em que procurava encaixar alguém em algum estereótipo, sua emissão vocal era forte como a de um barítono. Com o passar do tempo, notaram o que eu havia percebido há meses. Mantive-me quieto este tempo todo, mas quando o fato tornou-se notório, passaram o dia inteiro fingido que estavam zoando um aos outros com aquela voz sem noção – e às vezes até tripudiavam uns aos outros mesmo. Ele, no entanto, foi particularmente detonado. Dizem que pegou o ônibus chorando.

Sunday, September 21, 2008

Quarta-feira, cinco e meia da manhã

- Estanque o sangramento.
- Por que você não a leva ao hospital?
- A culpa é sua. Você é o doutor aqui, e eu não quero mais sujeira para o meu lado. Era só não se meter no nosso lance.
- Mas...
- Faça um curativo nela. Você já pegou nos peitos dela antes, vamos lá. Não ouse me dizer que você não tem nada a ver com isso. Anda logo, porque hoje estou a fim de socar quem me encher o saco.
É o mesmo modo ameaçador de sempre. Desde nossa adolescência é assim. O mesmo tom de voz, a mesma frase, o mesmo fedor de álcool, e ainda mais corpulento. Sua pretensão de me fazer seu eterno serviçal vem sendo minada pela minha dedicação ao muay thai, mas resolvo obedecer. Ela me importa, sempre desejei domar aquela insensatez sexual. Quando deslizo a mão em seu pescoço, pressionando a jugular, a pele macia morna, percebo que minhas chances de ser um homem realizado foram extirpadas.
- Deixe-a como está, ela está morta, pode sangrar à vontade.
É curioso notar, machões não passam de crianças mimadas. Logo se desmancham em choro convulsivo e sussurros negatórios. Não há bom senso que explique por que ela o admirava. Ligo para o 190 e saio para dar comida ao gatinho dela, Laerte, que, espero, me ficará de companhia.

28/04/2005 – 21/05/2005

Sunday, September 14, 2008

Suicídio Passional

Traído pelo inconsciente, fiz com que ela percebesse que ainda estava preso ao passado que renegava. Na noite em que finalmente começou a rolar, após muito insistir até que ela se ligasse em mim, entrei na rua errada. Mania idiota de pegar atalhos. Era a rua da Camila. Ela perguntou por que virei no rumo oposto da rua dela. Disse que me distraí, que a conversa estava tão boa e que estava tão feliz que nem estava prestando atenção no que fazia. Acho que até colou. Meia volta e três quarteirões depois, a força do hábito fode tudo de novo. Entrei na rua da Mariana, que era vizinha na rua de cima. Ela sabia sobre nós com certeza, foi mais recente. Desta vez ela não disse nada a não ser um tchau ao descer. O beijo foi na testa. Não atendeu o celular no dia seguinte. Uma semana depois me tratou com frieza, depois voltou a me tratar bem, o que foi irritante. Nunca mais falamos sobre nós ou sobre isso. Parei de olhar na cara dela e foi o fim daquilo.

Sunday, September 07, 2008

Zine

Há três anos, recebi a última carta de um fanzineiro, pedindo para trocar zines e tal. Escrevi um e-mail, falando para ela (era uma fanzineira, na verdade) mandasse um exemplar do zine dela. Recebi, esqueci onde o coloquei e acabei lendo apenas uma entrevista. Sequer lembro quem era o entrevistado. Não devia ser nada importante. Aquela cara que mandei foi a última pois não mandei um Descanse em Paz – este era o nome do meu zine – para a menina.
Eu me mudei para outra cidade e minha família comprou uma casa, conseguindo enfim zerar o aluguel. Mesmo assim, não consigo entender como essa menina descobriu meu endereço novo. Seu nome é Valéria e só me lembrei dela devido ao zine que ela mandou e que eu desprezei. Achei que ela ia me cobrar exemplares, mas o pior foi o que li depois. Era uma carta de suicídio. Na hora desacreditei. Passaram-se alguns dias e não conseguia mais pensar no trabalho, estava assombrado por aquela folha, preenchida frente e verso com mágoas, decepções e rejeições. Era sobre pessoas que não conhecia, mas não conhecia entender como elas os conhecera, se eram namorados, amigos, irmãos, sei lá. Com aquilo na cabeça, viajei até o endereço constante na carta. Verifiquei nos meus arquivos que ela era de Goiás, mas aquela carta era de Porto Velho. Pedi uma semana de folga que estavam me devendo e fui para lá. Ao chegar, a mãe me disse que ela havia morrido fazia dois anos. Foi suicídio, mas a mãe queimou a carta original. A que eu recebi era psicografada e me foi enviada por Júlia, uma amiga de Valéria, que a enviou em seu nome e com o endereço da sua mãe. Para quê isso eu não sei, mas a viagem foi legal e ao voltar acabei o zine que havia deixado parado e enviei uma cópia para a mãe dela.
06/05/2005