Sunday, January 25, 2009

Réquiem

A mãe tinha orgulho da filha e de si mesma por ter parido alguém tão querida e motivo de tantos comentários laudatórios, alguns piegas até, porém bonitos. O namorado da filha tem uma parte boa nisso, por pior que tenha sido sua atitude: ele segurava a mão de ambas durante a missa, e elogiava a comida da sogrona, e gostava de ficar conversando depois de comer, e ia para casa cedo, e não levava a filha para lugares ruins, e podia falar bem dele o dia todo, e não se cansaria de elogiá-lo. Ele a levou embora, mas levaram-no daqui quando ele estava na prisão. Agora a filha é a santa do Orkut. A mãe tentou apagar o perfil dela, mas não conseguia descobrir a senha. Tentou tudo: o nome da iguana de estimação, do namorado, do falecido pai, placa do carro. Enquanto isso, pessoas até mesmo desconhecidas, comovidas com o que leram nos jornais (que citavam todos os detalhes da vida da filha disponíveis no tal Orkut), iam escrevendo desejando uma ótima pós-vida para a filha. A mãe decidiu criar então o seu perfil, aprendeu a mexer com aquele Orkut, aquela internet que ela não gostava e que a fazia sentir-se desconfortável, ela uma professora que sempre soube que as modernidades não iam ajudar seus alunos a serem inteligentes e bem colocados, pois só os livros faziam isso, então apreender novidades tecnológicas era perder tempo com bobagem. Quando a mãe ia pedir para o administrador daquele site de relacionamentos tão fútil apagar o perfil da filha, ela leu-o uma última vez e deitou lágrimas com os depoimentos dos amigos da filha, tão íntimos, bem-humorados e contando coisas que a mãe não sabia, que ela jamais saberia. Isso fora os tais scraps, que eram escritos tanto por amigos como por desconhecidos, vizinhos antigos, artistas, gente que morava em outros países e muitos tipos de pessoas que ela nem imaginava existir. Em todos os aniversários da filha e em Dia de Finados a mãe visitava aquela página com a cor de céu, centro de peregrinação virtual, onde sempre havia quem pedia uma oração que ela tinha certeza que seria atendida até pelos engraçadinhos que entravam eventualmente para pichar aquele mural de evocações.

06/01/2006-09/01/2006

P.S.: Quando penso no caso Eloá e nas matérias dizendo que ela tinha orkut e que a página dela (que nunca visitei) passou a ser muito visitada após seu sequestro e morte, sinto-me meio estranho por ter escrito isso há três anos, mas gostei desse miniconto ao achá-lo e relê-lo.

Sunday, January 18, 2009

Chuva de ouro

Não é o que você está pensando, entendeu? Você tem uma visão preconceituosa de mim. Estou falando de algo real, que permanece. Não, não é nada disso também. Presta atenção: você acha que sabe das coisas. Só que você não sabe nada sobre aquele cofre. Interessado agora?

Ele ficou extremamente ligado a cada detalhe da conversa. Em como eles entrariam na casa. Como tacariam as barras pela janela, para a caçamba alcochoada do caminhão, durante a noite, sem barulho. Que a família era negligente e estaria viajando. O alarme era fácil de ser desativado e o cofre era acessível por meras picaretadas. O antigo comparsa o construiu e mentiu sobre a sua segurança. Para manter sua reputação, enganava apenas clientes selecionados, com muita penetração social. Entregava todo o ouro, literalmente, para o velho parceiro. Até tomar um tirambaço de escopeta da PM.

Aproveitando o fascínio e a momentânea distração do novo parceiro, tascou-lhe um beijo na boca. Porque parceiro tem ser parceiro.

Sunday, January 11, 2009

Muito doce na escola não dá certo

A luz negra partiu ao meio o mapa do Brasil, e foi então que tive a revelação: o berço da civilização fica aqui. A nave está enterrada aqui. Enquanto eu encarava a fumaça arco-íris que escapava pelas frestas da fenda no meio do mapa, invadindo a sala e anestesiando a todos para que não percebessem nada, notei que a bruma multicor torna-se ígnea ao aproximar-se de mim, recuando um pouco antes de tocar-me.

Sunday, January 04, 2009

Cabrón

Foi para lá sem pensar, mas ao se aproximar da casa, começou a encanar. Ficou rodeando-a, dando voltas pelo quarteirão com a moto, mas vencido pela falta de coragem procurou na casa do velho amigo que não via há quase um ano e que ele sabia que havia se mudado para perto dela. Celular na mão, parado na sarjeta cheia de água barrenta da chuva incessante que caíra pela manhãzinha, ele vê Beto abrindo a janela do apartamento por puro acaso, bem à sua frente. Beto não o havia visto, mas quando ouviu Davi chamando-o fechou a janela abruptamente para depois abri-la às gargalhadas cinco segundos depois. Pediu para que Davi subisse e ele o fez com uma agilidade jovial que não era sua em uma manhã de domingo. Papo vai e cerveja vem goela abaixo, recordando-se da adolescência às risadas e lamentando-se com desdém com a falta de propósito da vida profissional, ambos confessam que levaram chifres e prejuízos com as ex-namoradas recentemente.

Bêbado o suficiente e com a feliz certeza de que estava fazendo besteira, foi até a casa dela e bateu na porta. O pai dela atendeu e ele ficou sem ação e voz. Relutantemente, disse que era um amigo de Eliane, mas como o tiozinho nunca o havia visto, fechou a porta na sua cara sem dizer nada. Já tinha se virado e estava abrindo o portão quando ela abriu a porta e perguntou aonde ele ia. Ver um filme no cinema. Ela não estranhou nada e foi falante como nunca foi. Só que até chegar lá o efeito do álcool passou e ele não conseguiu dizer nada a ela e se contentou com um breve roçar no braço dela.

Não sabia o que dizer na volta e falou sobre o Woody Allen até cansar a ambos. Ela que teve que agarrá-lo no portão. O pai, vendo da janela, fez com que ambos entrassem, afinal era muito perigoso ficar até tarde na rua, e foi dormir sem aparentar qualquer preocupação. Ela tentou Davi para que eles dormissem juntos, mas não, os pais dela estão na casa. Não teve perdão, no sábado ela se arrumou e já era. Não é à toa que seu pai não estava preocupado.