A mãe tinha orgulho da filha e de si mesma por ter parido alguém tão querida e motivo de tantos comentários laudatórios, alguns piegas até, porém bonitos. O namorado da filha tem uma parte boa nisso, por pior que tenha sido sua atitude: ele segurava a mão de ambas durante a missa, e elogiava a comida da sogrona, e gostava de ficar conversando depois de comer, e ia para casa cedo, e não levava a filha para lugares ruins, e podia falar bem dele o dia todo, e não se cansaria de elogiá-lo. Ele a levou embora, mas levaram-no daqui quando ele estava na prisão. Agora a filha é a santa do Orkut. A mãe tentou apagar o perfil dela, mas não conseguia descobrir a senha. Tentou tudo: o nome da iguana de estimação, do namorado, do falecido pai, placa do carro. Enquanto isso, pessoas até mesmo desconhecidas, comovidas com o que leram nos jornais (que citavam todos os detalhes da vida da filha disponíveis no tal Orkut), iam escrevendo desejando uma ótima pós-vida para a filha. A mãe decidiu criar então o seu perfil, aprendeu a mexer com aquele Orkut, aquela internet que ela não gostava e que a fazia sentir-se desconfortável, ela uma professora que sempre soube que as modernidades não iam ajudar seus alunos a serem inteligentes e bem colocados, pois só os livros faziam isso, então apreender novidades tecnológicas era perder tempo com bobagem. Quando a mãe ia pedir para o administrador daquele site de relacionamentos tão fútil apagar o perfil da filha, ela leu-o uma última vez e deitou lágrimas com os depoimentos dos amigos da filha, tão íntimos, bem-humorados e contando coisas que a mãe não sabia, que ela jamais saberia. Isso fora os tais scraps, que eram escritos tanto por amigos como por desconhecidos, vizinhos antigos, artistas, gente que morava em outros países e muitos tipos de pessoas que ela nem imaginava existir. Em todos os aniversários da filha e em Dia de Finados a mãe visitava aquela página com a cor de céu, centro de peregrinação virtual, onde sempre havia quem pedia uma oração que ela tinha certeza que seria atendida até pelos engraçadinhos que entravam eventualmente para pichar aquele mural de evocações.
06/01/2006-09/01/2006
P.S.: Quando penso no caso Eloá e nas matérias dizendo que ela tinha orkut e que a página dela (que nunca visitei) passou a ser muito visitada após seu sequestro e morte, sinto-me meio estranho por ter escrito isso há três anos, mas gostei desse miniconto ao achá-lo e relê-lo.
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