O sol cálido na medida certa
reluz nos tacos do assoalho dispostos como era no apartamento no qual passou a
infância e adolescência, nos anos setenta e oitenta, e traz a lembrança das
tardes em que não precisava ficar restrito a um ambiente interno no escritório.
Especificamente, de quando teve
calos nas mãos pela primeira vez. Carregava uma enxada sob o olhar espantado do
pai – “Não imaginei que sairia da roça para ver filho meu pegar na enxada”. Mas
a frase foi acompanhada de um sorriso aprovador, sendo o estranhamento fruto
apenas do inusitado. Moravam num bairro bem arborizado, mas totalmente
urbanoide. Explicou-lhe calmamente: é que estavam fazendo uma pista de
bicicross num terreno vago.
Quem teve a iniciativa? Ele estava
presente à rodinha de conversa morgada, logo após o almoço, quando chegavam de
escolas diferentes loucos para poder trocar ideia, quando alguém surgiu com
essa. Mas décadas depois, o autor se esvaiu da lembrança; é como se tivesse
sido um desígnio divino do qual se incumbiram de bom grado.
Em uma semana ou menos fizeram
uma pista com rampas e fossos. Terminava numa ladeira do terreno que era
íngreme a ponto de assustá-lo hoje. No entanto, não a temia. Era uma subida aos
céus da adrenalina.
O primeiro a descer foi Palmito.
O único que já tinha entrado em competições de bicicross. Caiu no fim da picada
– literalmente – e foi parar no meio do mato. Ficou lá rindo. Anos depois
contaria que estava chorando e que conseguiu disfarçar bem. Era o mais velho,
pegaria mal – homens não choram, sabe qualé, acreditavam piamente nessas
merdas.
A união de quem gostava de sair
na pancada pelos motivos mais cretinos é a melhor. Moleques que se odiavam
trabalhando lado a lado, sem tretas. A conversa da qual mais se lembra era
sobre a prisão – ou detenção, nem queria se lembrar bem – de Paulo Ricardo, por
porte de cocaína. Seria boato? Nunca quis conferir. Já não gostava de RPM
naquela época. O detalhe sarcástico: quem mais condenava o cantor naquela
época são justamente os que mais cheiram hoje em dia – isso ele sabe que não é
boato. Será que eles se lembram dessas conversas e sentem que traíram a si
mesmos? Enfim, não estava no horizonte de eventos à época. O buraco era menos
embaixo.
Marcaram um campeonato da rua. No
final de semana. Já tinham treinado a semana inteira. A pista tomada por eles
todo dia. Todos ganharam.
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Na segunda, depois da escola, a
pista estava destruída. O terreno tinha dono, claro. Óbvio. Propriedade
privada, não era segredo. Ver tudo revirado, à toa, foi o desalento que fez
cada um partir para seu lado e eventualmente partir a cara um do outro nas
velhas brigas idiotas que voltaram a rolar, mas ninguém se machucava muito e se
pá às vezes seguia a amizade. Agora, pela primeira vez, ao se lembrar da pista
que não deixou traços da existência e deu lugar a três casas, se dá conta de
que a construção coletiva, além do convívio nela, foi a primeira TAZ da qual
tomou parte.