Sunday, February 22, 2015

Oi Anarquia, Oi.

O sol cálido na medida certa reluz nos tacos do assoalho dispostos como era no apartamento no qual passou a infância e adolescência, nos anos setenta e oitenta, e traz a lembrança das tardes em que não precisava ficar restrito a um ambiente interno no escritório.
Especificamente, de quando teve calos nas mãos pela primeira vez. Carregava uma enxada sob o olhar espantado do pai – “Não imaginei que sairia da roça para ver filho meu pegar na enxada”. Mas a frase foi acompanhada de um sorriso aprovador, sendo o estranhamento fruto apenas do inusitado. Moravam num bairro bem arborizado, mas totalmente urbanoide. Explicou-lhe calmamente: é que estavam fazendo uma pista de bicicross num terreno vago.
Quem teve a iniciativa? Ele estava presente à rodinha de conversa morgada, logo após o almoço, quando chegavam de escolas diferentes loucos para poder trocar ideia, quando alguém surgiu com essa. Mas décadas depois, o autor se esvaiu da lembrança; é como se tivesse sido um desígnio divino do qual se incumbiram de bom grado.
Em uma semana ou menos fizeram uma pista com rampas e fossos. Terminava numa ladeira do terreno que era íngreme a ponto de assustá-lo hoje. No entanto, não a temia. Era uma subida aos céus da adrenalina.
O primeiro a descer foi Palmito. O único que já tinha entrado em competições de bicicross. Caiu no fim da picada – literalmente – e foi parar no meio do mato. Ficou lá rindo. Anos depois contaria que estava chorando e que conseguiu disfarçar bem. Era o mais velho, pegaria mal – homens não choram, sabe qualé, acreditavam piamente nessas merdas.
A união de quem gostava de sair na pancada pelos motivos mais cretinos é a melhor. Moleques que se odiavam trabalhando lado a lado, sem tretas. A conversa da qual mais se lembra era sobre a prisão – ou detenção, nem queria se lembrar bem – de Paulo Ricardo, por porte de cocaína. Seria boato? Nunca quis conferir. Já não gostava de RPM naquela época. O detalhe sarcástico: quem mais condenava o cantor naquela época são justamente os que mais cheiram hoje em dia – isso ele sabe que não é boato. Será que eles se lembram dessas conversas e sentem que traíram a si mesmos? Enfim, não estava no horizonte de eventos à época. O buraco era menos embaixo.
Marcaram um campeonato da rua. No final de semana. Já tinham treinado a semana inteira. A pista tomada por eles todo dia. Todos ganharam.
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Na segunda, depois da escola, a pista estava destruída. O terreno tinha dono, claro. Óbvio. Propriedade privada, não era segredo. Ver tudo revirado, à toa, foi o desalento que fez cada um partir para seu lado e eventualmente partir a cara um do outro nas velhas brigas idiotas que voltaram a rolar, mas ninguém se machucava muito e se pá às vezes seguia a amizade. Agora, pela primeira vez, ao se lembrar da pista que não deixou traços da existência e deu lugar a três casas, se dá conta de que a construção coletiva, além do convívio nela, foi a primeira TAZ da qual tomou parte.

Wednesday, February 18, 2015

A tempestade ainda é a bonança

Sunday, February 08, 2015

Travesseiros são boias

O navio aproximava-se vagarosamente. Escurecia. O vento lépido fustigava a plataforma e uivava pelos cantos. Era petróleo que se extraía ali? 
Belas fotos. O foco preciso. Queria tirar melhores ainda. Apoia-se numa grade.
A queda não foi sentida. Não percebe o escorregão. Viu-se no mar gélido, mas era como se não tivesse caído.
Acordou. O leito vazio é mais frio. Continuou afogando-se.

Sunday, February 01, 2015

Sempre há uma última vez

A casa estava aparentemente arrumada. A sala estava brilhando.
Bastou abrir a porta da cozinha e ver as toneladas de louça acumulada na pia para notar que era mero jogo de cena. Mas ele logo fechou. Ela não percebeu. No quarto, na estante antes arrumada, havia muito pó. Fez vista grossa para bancar o fino. Os sinais de depressão nela e no ambiente eram explícitos. Preferiu olhar pela janela. As montanhas ao longe, eclipsadas pela poluição, sussurravam a lembrança de casa, em Minas. Perguntou-se o que fazia ali de novo, depois de tantos fins conflitados, tantos adeuses. Ela estava com calor, de calcinha e sutiã. “Imagina que isso aqui é a praia, nem esquenta, porque já tá quente demais”, ela galhofou, às gargalhadas. Desde que estivesse bem-humorada, o humor dela era irretocável. Ele pensou em dizer que ela poderia ganhar muita grana fazendo stand-up. Optou por apenas rir, contemplá-la brevemente e continuar a olhar pela janela. Qualquer palavra em falso que a ofendesse, sabe-se lá por que razão esdrúxula, poderia resultar numa treta titânica.
Ele sentiu a mão afagando-lhe o peito, depois de muito papo furado. Ela não deixou que ele pagasse o jantar, nem o café da manhã, nem o almoço. Fez ovos mexidos de manhãzinha.
Despediram-se. Esqueceu uma camisa, de propósito, para poder buscá-la. Ela mandou um amigo, que até então nunca tinha visto, entregá-la. O amigo não era nada amistoso. Ela nunca mais atendeu os telefonemas e bloqueou todas as formas de contato. No bolso da camisa, um bilhete com um beijo de batom e um adeus foi lavado e o fim, incógnito, converteu-se em reticências fantasmagóricas.