A primeira pista de skate da
minha cidade não existe mais. Três de nós quatro também não.
Gostávamos de chegar lá de
manhãzinha. Pois no meio da manhã já estava o maior crowd, como dizíamos à
época. Ou seja, lotada. Não vejo ninguém mais novo ainda usar o termo. Antes
que aqueles tempos chegassem a termo e a pista passasse a ficar vazia, era a
hora em que usávamos para aprender a andar direito, para não fazermos feio na
frente dos outros. Era só um half pipe e mais nada. A pista de street
construída em volta só tomaria forma em meados dos anos noventa.
Isso foi no fim de 1989,
provavelmente. Já andávamos na rua fazia tempo, mas a experiência de andar no
vertical era (quase) nova. Já havíamos ido andar nas pistas de cidades
vizinhas, São João da Boa Vista e Varginha, mas nossos pais sempre faziam com
que fôssemos embora logo, eram apenas pequenas concessões que faziam durante
viagens. Em Varginha havia um bowl e até hoje me lembro da sensação mágica de
andar brevemente numa pista assim. Em SJVB andei pela primeira vez em um half
pipe e me apaixonei pela primeira vez, acho. Tinha uma local chamada Beth que
era uma menina linda. Ela era linda MESMO (anos depois um amigo que fiz lá me
disse que ela ser tornara modelo), desbocada e simpática – ela me falava oi e
eu quase caía do skate. Muito diferente das meninas bonitas que eu conhecia,
quase todas umas idiotas (as que ainda encontro pela vida, aliás, continuam
cretinas, mas não são mais gatas). Andava bem e era mais velha, já devia ter
uns 18 anos. Ela era alta e chegava alto na pista. Inatingível.
Depois de algum tempo aprendendo
o valor de acordar cedo e nos dedicarmos a algo – mas algo que valia a pena –
já andávamos bem o suficiente para ficarmos em meio a todo mundo. Mas
mantivemos o hábito de ir cedo, para andarmos mais à vontade, sem trombarmos
sem querer em ninguém. O que podia dar treta. No entanto, ficávamos na pista
até tarde, quase todo dia. Era bom ficar conversando, de qualquer forma, quando
estava tão cheio de gente que tínhamos que ficar negociando de quem era a vez.
Sempre tinha algum fominha, mas nada que gerasse maiores atritos. Mas era gente
demais e celeumas surgiram, meses depois.
Surgiram rumores de que um
moleque que andava bem, o Purga, estava com o skate novo porque havia roubado-o
de alguém. Eu sempre vi o skate como um esporte honrado – hoje diria ético –,
sem a estupidez do futebol, com suas faltas e ceras, desonestidade, tiração de
sarro e brigas que iam se tornando cada vez violentas conforme fomos deixando
de sermos crianças. Bem diferente de nós no skate, que torcíamos um pelos
outros e nos incentivávamos. Utopia adolescente, claro. Com o passar do tempo,
havia umas quase brigas lá. Uma tensão muda, uma guerra não declarada de carrancas
no lugar de sorrisos. Talvez isso já tenha sido em 1991, pois me lembro de uma
tarde em que sarcasticamente chamei o Purga de Collor, insinuando que ele fosse
ladrão; não tenho certeza se os malfeitos do então presidente já eram tão
evidentes em 1990. Ele ficou quieto. Meus amigos riram. Acho que um cara um
pouco mais velho, o Juba, deve ter tomado as dores. O Purga deve ter contado
para ele depois. Eu sei que esse Juba, que até então era alguém que só me
cumprimentava e com quem eu mal havia trocado algumas palavras, e somente sobre
skate, passou a me encarar quando eu chegava na pista. Nunca mais falou comigo.
Eu só ia para lá com meu irmão e meus amigos mais próximos, o Maurício, o
Evandro, o Paulo e o Márcio. Não me sentia mais à vontade. Mas não queria parar
de andar na pista.
O clima, no entanto, pesou muito.
As conversas eram cada vez mais “ganguistas”, embora não houvesse nenhuma
gangue de fato. Voltamos a fazer mais street e a ir menos à pista. Andávamos em
outros bairros e nas ruas do nosso mesmo, como antes, onde estávamos seguros.
Não me esqueço, no entanto, de uma tarde. Nunca me esquecerei. Todo mundo
resolveu fazer alguma outra coisa, jogar War, videogame, algo assim. Eram férias,
meio de semana. Eu e o Maurício decidimos passar a tarde andando de skate e
fomos, skate de baixo do braço, andar no bairro ao lado, interessados em uma
transição de uma nova garagem. Enquanto caminhávamos distraidamente pela rua
Berilo, a rua mais abaixo do bairro, perto de uma casa que existe até hoje, com
duas estátuas de cachorro no portão, demos de cara com o Purga e o Juba, que
vinham também conversando animadamente e com os skates debaixo do braço, como
nós. Eles, com certeza, também toparam inesperadamente conosco e ficaram tão
atônitos e mudos como nós. Achei que teria que, pela primeira vez, usar o skate
para acertar algo que não fosse uma manobra. Cruzamos olhares
atentos. Antes éramos, senão grandes amigos, amigos, de certa forma. Nada foi
dito. Nada aconteceu. Seguimos nossos caminhos, incólumes. Éramos, francamente,
uns meros moleques, todos assustados e nada durões. Não olhamos para trás. Eles
talvez sim; nunca saberei.
Hoje, se os encontrasse,
perguntaria sobre o episódio, mas não tenho como saber. O Purga morreu de AIDS,
segundo me disseram, em 1992 ou 1993. Um conhecido me disse que ia visitá-lo no
hospital e me chamou para ir junto. Contei o que aconteceu, ele insistiu para
eu ir, fazer as pazes, mas eu era muito imaturo, disse que não. Nem achei ele
iria morrer, mas na semana seguinte esse conhecido, o Alisson, me disse que ele
havia falecido. Em 1995, já na universidade, quando vim passar um feriado em
casa, meu irmão questionou-me se eu me lembrava do Juba. “Sim, aquele babaca”,
respondi, atrelado à imagem do passado, ao que meu irmão retorquiu: “Pô, eu o
encontrei há um mês mais ou menos, ele perguntou como você estava. Ele morreu
ontem na estrada, indo para uma festa em Andradas”. Fiquei sem palavras. O
Maurício não tem como confirmar minha história. Ele morreu em 1997, fazendo
rafting.
Em 1999, com meros 24 anos, tive
minha primeira crise de meia-idade, mesmo sendo muito jovem. Numa tarde, sei lá
o porquê disso, lembrei-me do episódio da rua Berilo e dei-me conta de que era
única pessoa que o vivenciou e que ainda estava viva. Não há descrição para a
sensação de melancolia e de estranhamento que me abateu.
Um quarto de século depois
daquela tarde da qual só eu restei para contar a história, a vida segue. Há uma
frase de Jay Adams, lenda do skate, também já falecido, muito famosa. “Você não
para de andar de skate porque fica velho. Você fica velho porque para de andar
de skate”. Como os três daquele entrevero que não aconteceu de fato e do qual
sou único sobrevivente, jamais ficarei velho.