Corremos de volta para casa.
Depois da aula havia pressa de viver. Normalmente andávamos rápido – às vezes
devagar, falando alto grandes bobagens que irritavam os adultos que passavam
por perto, despertando-os da indiferença maquinal – para chegarmos logo e
almoçarmos. Já estava ficando frio e a
mata que margeava a avenida pela qual voltávamos bafejava seu hálito frio sobre
nós.
Após o almoço quase ninguém havia
tomado banho. Nem suamos muito.
Indecisão. O que fazer? Truco
valendo grana. E se a polícia ou o comissariado de menores passasse na rua? –
alguém aventa essa possibilidade, logo desprezada.
Ninguém sabia jogar pôquer. Então
vai truco mesmo. O dinheiro apostado: notas amassadas de Carlos Drummond de
Andrade, Cecília Meireles e principalmente Machado de Assis, que não valia
quase nada nas nossas carteiras e mentes. Essas tinham carimbo de cruzado novo.
As outras eram valiosas demais para nós, pirralhos que éramos. Mal sentamos na
calçada e somos interrompidos.
O síndico do prédio, burocrata desalinhado,
saindo do almoço, indo para o trabalho, passa e olha com reprovação.
- Jogo de azar dá cadeia. Ou
vocês somem daqui da frente ou chamo a polícia.
Rimos da cara dele. Então o Fred
conjetura que se a polícia vier, talvez todos perdêssemos o dinheiro. Então meu
irmão e eu convidamos todos para jogarmos em casa. Uma dupla espera, as outras
duas jogam, vamos começar o jogo de novo; esse não valeu.
Eu e Fred estamos contra o meu
xará Daniel e o Paulo. Tá meio que pau a pau, mas abrimos vantagem. Inventamos de fazer sinais falando alto
nomes de personagens da Marvel, daí sabíamos as cartas que o outro tinha. Meu
xará e o Paulo não eram de ler quadrinhos. Mas eles deram aperto e numa seizada
caímos que nem Tio Patinhas, devido à ganância injustiçada. Afinal, havíamos
decidido, antes de começar a jogar, já fora do perigo da rua, que o jogo não
vale dinheiro. Não tem que ter sentido não, não tem essa. Desistimos de perdermos
grana e boa, vai que dá briga.
Ficou 14 a 13. Eles podiam
namorar as cartas um do outro. Eu e meu parceiro estamos inconformados com a
virada. Eles decidem ir. O Fred só me diz Thanos. Ou seja, não tem nada. Eu
balbucio um Homem-Aranha. Ou seja, só tinha um mísero ás.
- Já saquei o código deles, eles
só têm um ás – sacaneia Paulo, rindo com desdém. Ele era esperto.
Fomos para o abatedouro.
Conseguimos segurar até a terceira rodada, a primeira deram para nós de graça,
forçando-me a matar o rei deles com meu ás.
- Falei! – zomba Paulo.
Então acontece o inacreditável.
Meu xará solta um truco com gosto, grita e sobe na cadeira, triunfante, assim
que ganham a segunda.
- Perdeu! – Fred não perdoa.
Meu irmão e o Márcio caem na
gargalhada; olhavam a partida com certo desinteresse, até então. Eu e Paulo
ficamos atônitos. O meu xará não. Até repete.
- Truco!
- Você não pode trucar! Tá com
quatorze!
- Ai, esqueci! - murchando.
O Paulo levanta da mesa, abre a
porta e vai embora, sem dizer uma palavra. Está furioso. Mas todos sabem como
ele é avesso a brigas. Todos estamos gargalhando a ponto de faltar ar, menos
meu xará, que, derrotado, também abre a porta e vai embora chorando.
Ninguém quis jogar mais, embora
tivesse outra dupla. Depois dessa, pra quê?
Fomos pra casa do Evandro. Já
tinha menos sol. O chamamos para jogar bola. Depois de fazer algum cu doce,
como de costume, ele topa. Falta um. Já íamos à casa do Rodrigo, mas ele
aparece espontaneamente na rua, justo quando estamos de volta.
Dois na linha e um no gol. Já
basta.
- Mas você tem que dar chutão?
Jogamos na minha rua mesmo, que é
uma DESCIDA. A bola sempre vai longe, na rua de baixo. Alguém sempre se fode
pra buscar. O par ou ímpar para ficar com o gol do lado de cima é vida ou
morte.
Mas é só vida mesmo. O tempo
passa rápido quando nos divertimos, todos sabem. Mas a tarde está passando
devagar. Tarde eterna, fundindo-se a outras tardes nas quais as regras não
escritas foram apreendidas por todos nós, ali. Por isso não gostávamos quando
alguém de fora vinha jogar, a menos que fosse algum amigo muito amigo de
alguém, que logo pegasse todas as regras etéreas de cabeça. Às vezes isso
acontecia. Ninguém aparece.
Dou outro chutão. A bola cai mais
longe desta vez, dentro do jardim da casa da esquina. Cai justo no canteiro das
flores. A senhora que morava lá, mal encarada, com uma voz rascante que
intimidava-nos, na verdade era boazinha e sempre deixava que nós pegássemos as
bolas que caiam lá dentro. Desta vez, pulo a cerca e pego a bola sem dizer
nada. Uma pulada de cerca inocente. Matei todas as flores dela. Restou uma violeta.
Que nem sei se é uma violeta. Até hoje.
No comments:
Post a Comment