O cheiro do feijão cozido
impregnava o apartamento. Era uma leseira depois do almoço e da escola. Mas
ninguém usava esse termo “leseira”, acho. Falávamos que estávamos “morgados”.
Acho que ficávamos morgados o dia todo, por nossos relógios biológicos não
estarem adaptados a acordar cedo, recém-adolescentes que éramos, obrigados a ir
ao colégio de manhã, após termos sempre estudado à tarde. Só melhorávamos
quando saímos pra rua para zoar, do meio da tarde em diante.
O rádio estava sempre ligado.
Legião Urbana, Ira!, Plebe Rude, Capital Inicial e Titãs tocavam o tempo todo,
eram tão populares quanto Roberto Carlos era para os nossos pais. Tinha banda
chata e convencional como o Barão Vermelho também, que até hoje não me desce,
isso lá tinha. O doido, no entanto, é que no meio da programação, às vezes,
tocava Garotos Podres, Replicantes e Toy Dolls. A primeira vez que ouvi “Eu
quero matá-lo/aquele porco capitalista” foi numa rádio FM normal, dessas que hoje
tocam, sei lá, Chris Brown. Tá, naquela época também tocava Chris de Burgh, que
é tão ruim quanto ou pior, não era tão diferente assim também. Dizem que naqueles
tempos havia uma rádio muito boa em Poços de Caldas chamada Cidade FM, que
estaria ligada nas novidades do rock dos anos oitenta, mas não guardei o nome
da rádio e nem dos locutores, só das músicas e grupos mesmo, quando consegui
guardar.
O interessante é que não consigo
imaginar uma rádio convencional tocando O Satânico Doutor Mao e os Espiões
Secretos, banda do vocalista do Garotos Podres, em 2018. Até porque não é um
clima otimista de redemocratização, mas sim uma atmosfera sinistra em que a
extrema-direita volta a pedir golpe militar na cara dura. Pior ainda, no fim
dos anos oitenta não havia essa praga fundamentalista religiosa. À época, havia
toda uma grita contra censura; hoje, se alguém tocar algo com o nome “satânico”
no rádio, correrá o risco de perder o emprego. Bem, provavelmente naquela
década também e talvez eu esteja edulcorando o passado, afinal a Igreja
Católica conseguiu censurar o Je Vous Salue Marie durante a presidência do
besta do Sarney. Isso fez com que eu assistisse ao filme com uns quinze anos.
Levou outros quinze anos para ter coragem de assistir um filme do Jean-Luc Godard
de novo, que hoje considero um gênio, pois assisti ao filme apenas porque ele
foi proibido, sem ter maturidade alguma para isto – e achei um porre.
Àquela época rolava também toda
uma discussão bizantina na imprensa musical sobre qual seria o grupo pop
perfeito. Bobagem, enquanto se digladiavam com isso havia toda uma geração de
músicos e inovadores da eletrônica renovando tudo e nada disso de pop perfeito
existe, nada é perfeito. Até porque todo mundo sabe que a música pop perfeita
foi feita em 1967 e é Femme Fatale, do Velvet Underground.
Enfim, só quem viveu antes do
advento da internet e não tinha grana pra comprar discos para saber como é
emocionante quando se tocava uma banda da qual você gostava muito no rádio. Era
a oportunidade de gravar a música, você tinha que ficar atento. E o mais importante:
não ligar na emissora para pedir a música. Senão eles soltavam alguma maldita
vinheta em cima. O importante era ligar o rádio e se ligar como um
caçador de tesouros no fundo abissal. Eu não gravei Papai Noel, Velho Batuta.
Tive que esperar anos para ouvir a música depois, após o começo dos anos
noventa. Vocês acham que tocava só Nirvana quando chegou a era grunge? Mal
tocava. As rádios preferiam 4 Non Blondes e outras bandas mais palatáveis, nem
Pearl Jam rolava tanto assim. O poperô já tinha dominado tudo antes. E nem era
ruim no começo, bandas como o Bomb the Bass eram muito criativas; hoje suas
enérgicas colagens sonoras só não soam como a música pop eletrônica do futuro
porque o futuro já chegou e ele é mais distópico. Mas já sabia que seria assim,
não confiava nos DJs. Eu ouvia Smiths desde os anos oitenta e lia algumas das
letras, sabia que os DJs de rádio não mereciam crédito. Com exceção do DJ Banana (achava antes que era o DJ Iraí
Campos), que inventou a esquecida e engraçadíssima paródia de rap chamada
Sbrebow, outro hit dos estertores dos anos oitenta.
Daniel Souza Luz é jornalista e revisor
Esta é a terceira versão da crônica Pop Group, publicada aqui no blog em quatro de janeiro de 2016. A segunda versão saiu no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em três de fevereiro de 2018, já consideravelmente ampliada. Nesta versão a revisei, eliminando expressões repetidas e alguns trechos quase pleonásticos, além de corrigir um erro no fim; provavelmente fica esta versão como a definitiva. Principalmente, queria corrigir o título de Grupo Pop e para O Grupo Pop, em homenagem à banda pós punk inglesa The Pop Group, que, diga-se de passagem, era radicalmente experimental e dissonante, não tendo nada a ver com as minhas lembranças radiofônicas.
Foto que tirei com celular em 22/02/2018. |