Há crianças que amam gatos. Que
lamentam banhos. Que fazem birra para não comer salada. Cada uma com sua mania.
Eu tinha medo de monstros japoneses.
Meu irmão é mais novo do que eu e
adorava Ultra Seven e Spectreman, que me despertavam pavor. Não só seus
inimigos, mas também os protagonistas, que para mim nada tinham de heróicos.
Não sei explicar por que algo tão farsesco como esses seriados japoneses
inspiravam-me medo. Achava que seria esmagado, tenho essa vaga sensação quando
penso a respeito. Um desses dois heróis aí se agigantava para combater os
monstros que vinham arrasar Tóquio. Talvez ambos. Só via trechos disso e saía
da sala, pra mim qualquer um deles poderia pisar no prédio onde morava.
Procurava não externar esse medo; deveria tê-lo feito, alguém poderia me
explicar que isso só acontecia no Japão e eu poderia tranquilizar-me, igual a
um amigo da pré-adolescência que não tinha medo de demônios porque os filmes
mostravam que eles só possuíam pessoas nos Estados Unidos. Ele acreditava
piamente nisso.
Lá pelos oitos anos esse medo
passou. De bobeira, um dia, liguei a TV e estava passando Robô Gigante. Era uma
família de robôs espaciais, tinha o pai, a mãe e o filho que combatiam
invasores da Terra. Ah bom, de família não tenho medo. Já dos defensores dela...
Bem, isso é outra história. O fato é que, ao que parece, o seriado não era
assim como o descrevo, na realidade. Seria um garoto que controlaria o Robô;
então tenho a memória falsa de que era uma família de robôs, ou havia um seriado
concorrente de robôs gigantes, ou me induzi a acreditar que havia uma família,
inclusive me lembro da Robô Gigante, maior do que filho e menor do que o
marido. Prodígios da mente infantil.
Até o medo do Spectreman e do
Ultra Seven acabou. Nem sei bem qual é um e qual o outro até hoje, são
clássicos da TV, mas não prestava atenção. Já de Robô Gigante gostava tanto que
não teve como não gostar de Círculo de Fogo, filme do Guilherme del Toro,
inclusive me identificando com o medo que a personagem Mako sente ao se
confrontar com suas memórias de criança. Fizeram uma continuação, mas sem o del
Toro dirigindo não me animo tanto assim, por mais que adore robôs gigantes. O
melhor de todos eles, aliás, é o Robert Smith, do The Cure, transmutado em um
robô-borboleta num episódio do infame desenho South Park para combater uma
monstruosa Barbra Streisand, transformada num robô maligno que arrasa a cidade
onde se passa a história.
Todos estes seriados japoneses
eram dos anos sessenta e setenta. Em meados dos anos oitenta estrearam no
Brasil outras produções nipônicas, mais contemporâneas, mas tão toscas quanto
suas predecessoras. Aí já não falavam mais a minha linguagem, mas o pessoal um
pouco mais novo ainda gostava e a geração da minha irmã Fernanda,
principalmente, adorou. Jaspion e Changeman foram grandes sucessos seguidos,
salvo engano, pelo Jiraya. Na real, era Esquadrão Relâmpago Changeman; no seu
quarto e no quarto acima do nosso apartamento, no apê da nossa vizinha
Paulinha, Nanda e sua turminha, nossos também vizinhos Giovani Molinari e
Juliana Mariano, imitavam a formação e os movimentos do esquadrão. Tinha até
gente da minha idade caindo nessa. Eu já era velho demais para aquilo, achava
uma bobeira. Queria mais era um beijo das meninas da minha idade, só um beijo que
fosse, não tinha mais a mentalidade para aquelas criancices; afinal já era
rapazinho e gostava é de videogames, filmes de terror e outras infantilidades
de adultos.
Numa tarde de um sábado perdido
no fim dos anos oitenta fui dar uma caminhada no centro da cidade com meu amigo
Cleiber Pomárico Filho, hoje cirurgião plástico em São Paulo. Fiquei muito
feliz, pois não era de andar a pé pela cidade à toa. Vimos uma movimentação em
frente à locadora Click Vídeo, que há muito não existe mais, na rua Prefeito
Chagas, a qual havia sido fechada para a circulação de veículos. Paramos para ver
o que era e descobrimos que se tratava de uma exibição com atores representando
os Changeman. Da esquina, meio de longe, vimos minha irmã e meu pai na calçada,
esperando pela apresentação; eles também nos viram e deram tchau de lá.
Conversando sobre garotas, absortos, fomos surpreendidos por atores vestidos
como os inimigos da trupe do Changeman, uns alienígenas todos azuis,
desengonçados, que sussurravam uns barulhinhos ininteligíveis. Caímos na
gargalhada por nos vermos bem no meio do show.
Tempos depois ainda lembrávamo-nos
do episódio aos risos. Comentando a respeito com minha irmã, há poucos anos,
também me recordei que achei as vestimentas dos atores, todas, muito realistas,
tendo em vista o quão irreal originalmente eram. Estavam perfeitas, era
convincente. Então a Nanda me contou que, como ela era muito gurizinha, com uns
seis aninhos, ela achou que era de verdade, que era mesmo os integrantes do
Esquadrão Relâmpago Changeman! Achou que a luta foi real. Que bom que ela
gostava; com a mesma idade, se eu tivesse visto o Spectreman na rua, eu teria
saído correndo e me acabaria de chorar. Naquele dia, o que foi apenas um caso
folclórico para mim quando fui para a cama, para ela foi um sonho. O sonho.
Aliás, esta crônica é dedicada para a Fernanda, espero que tenha uma surpresa
ao revisá-la, como usualmente faz. Minhas crônicas que saem com erros são as
que não mando para ela revisar.
Daniel Souza Luz é
jornalista e revisor
Sussurros Japoneses é uma crônica inspirada numa conversa com a minha irmã, meses atrás. Ao revisar a crônica, ela me disse que se emocionou e que ficou com a voz embargada ao ler o último parágrafo para o meu irmão. Tirei o título de uma coletânea de compactos do The Cure, cito todos os nomes das músicas da compilação em meio ao texto, o que me motivou muito. Enquanto escrevia, me lembrei do episódio do South Park em que o Robert Smith vira um mecha (robô gigante), veio a calhar! Foi a primeira crônica totalmente inédita que fiz para o jornal desde o início de março, quando escrevi Dispositivo da Moda; nos três meses seguintes somente reescrevi e ampliei crônicas que havia publicado anteriormente no blog. Sussurros Japoneses saiu no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) no feriado de 31 de maio de 2018. Em relação à original, apenas fiz uma alteração de estilo numa frase e também corrigi o nome do Spectreman. Na versão publicada pelo jornal grafei erroneamente como "Spectremen", que na verdade soa melhor aos meus ouvidos - o certo para mim deveria ser "Changemen" e não Changeman, então um herói com nome no plural faz um bom contraste ao Esquadrão Relâmpago.
Print do PDF da edição do jornal no qual a crônica foi originalmente publicada; o jornal ilustrou o texto com uma foto do Spectreman. |
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