Daniel
da Luz foi um homem trabalhador, bom pai e alegre. Gostava de ajudar as
pessoas, de rir, de contar histórias e piadas. Pediu para pôr como epígrafe no
seu túmulo a inscrição “Aqui jaz o homem mais feliz do mundo”. Não chorem ao se
lembrarem dele, mas sim sorriam e riam; se possível, caiam na gargalhada, ele
preferiria assim. Mas lembrem-se dele, sempre.
Bem,
até aqui está o que escrevi, com a ajuda da minha mãe, que me lembrou que ele
gostava de ajudar os outros e para quem ele disse o que gostaria de constar no
seu epitáfio, para constar no cartão de lembranças que será distribuído neste
final de semana, na missa de sétimo dia do meu pai. Minha amiga Renata Chan
revisou o texto para mim, assim como esta crônica, e disse-me que se lembrou d’Os
Excêntricos Tenenbaums devido à frase a constar na epígrafe. Não assisti ao
filme, mas meu papai me faz recordar outro: Peixe Grande e Suas Histórias
Maravilhosas, do Tim Burton, baseado num livro de Daniel Wallace, o qual ainda
não li.
Meu
pai gostava de contar história de pescador, mas nenhuma delas envolvia pesca. Como
em Peixe Grande, também eu, filho mais velho, formei-me em jornalismo e não
aturava as mentiras dele. O Daniel pai era um cara inteligente. Quando eu era
criança, ele lia o Pasquim para nós, nos falava de política; sei quem é Adam
Smith e Karl Marx, o que é capitalismo e comunismo, desde a mais tenra idade,
horrorizem-se defensores de Escola Sem Partido (e não optei por nenhum deles,
idiotas). Ainda estávamos na ditadura quando ele nos falava de Marighella e
Lamarca, assuntos tabus na época. O livro do qual meu pai mais falava era
História da Riqueza do Homem, de Leo Huberman, que era um historiador marxista;
só descobri isso agora, para minha total surpresa, ao escrever estas memórias. Isso
porque meu pai ainda nos falava muito dele quando entrou para o PMDB, no início
dos anos noventa, e passou a ter uma postura cada vez mais pragmática, fazendo-me
supor que Huberman era um autor de direita liberal, até pelo título do livro. Antes,
papai era brizolista roxo, filiado ao PDT, e gostava de afirmar que era
ex-comunista.
A
questão é que meu pai contava tanta mentira cabeluda, muitas delas envolvendo conquistas
amorosas, que caiu em descrédito comigo. Passei a ser completamente cético com
relação às histórias de seu passado de esquerdista radical, por exemplo. Até que
dois fatos me mostraram que, como em Peixe Grande, muitas vezes ele só dava umas
exageradas na verdade. Ao voltar para Poços de Caldas em 2001, depois de
formado, encontrei na casa do meu amigo Raphael Xavier um velho volume
amarelado de Marx que meu pai havia emprestado para ele. Estava datado e
assinado por ele: era de 1968, poucos meses antes do AI-5. Isso explica porque
nunca tinha visto esse livro em casa; ele o manteve bem escondido.
Naquele
ano ou no seguinte, morreu o ator Fernando Frizzo. Meu pai viu a notícia e
disse-me que ficou triste com isso, que havia feito teatro e que simpatizava
muito com ele. Ah, peraí, teatro? Não tem nada, mas nada a ver com ele.
Desculpem-me, para mim, ser politicamente correto ou incorreto são duas
bobagens, é maniqueísmo, então não vou edulcorar o passado, apesar de ser sim
uma frase homofóbica: não me lembro agora exatamente do meu pai dizer “teatro é
coisa de viado”, mas é a cara dele dizer isso, quem o conheceu sabe. Ninguém é
santo e Daniel da Luz era um ser humano falho como qualquer outro, um homem de
seu tempo, não estou escrevendo uma hagiografia.
Pois
bem, e não é que meu pai fez teatro estudantil? Foi no fim dos anos sessenta
(não no fim dos anos setenta, como saiu no obituário que escrevi para o Jornal
da Cidade). Quem me contou foi Teresa Mesquita, educadora e prima do jornalista
Luis Nassif. Um dia, nos idos de 2003, fui entrevistá-la, ela viu meu nome e me
contou que faziam reuniões secretas, pois eram vistos como subversivos e viviam
sob uma ditadura. E faziam peças de teatro, das quais meu pai participava.
Fiquei de cara, então era tudo verdade – talvez aumentada de uma forma um tanto
épica nas histórias que nos contava, mas era.
Há
tantos causos dele que gostaria de retransmitir, mas o espaço reservado para
este texto está acabando. Fica aqui meu favorito: diz meu pai que ele teve uma
boate em Beagá e que um dia um sujeito estava lá aprontando uma confusão. Isso
teria sido nos anos sessenta. Ao abordar o cara e pedir para que ele parasse a
baixaria, ele teria dito “Eu sou Agnaldo Timóteo!” e meu pai teria respondido
“E daí? Eu sou Daniel da Luz!”. Isso feito, saíram pela rua trocando tiros. É
inverossímil, mas e se for real? Como dizia o cineasta John Ford: “Quando a lenda
é mais interessante que a verdade, imprima-se a lenda”.
Daniel
Souza Luz é escritor, jornalista e revisor
Este texto, híbrido de crônica e memórias, saiu no dia sete de dezembro de 2019 no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG). Também foi publicada, de forma resumida, no jornal Mantiqueira, na mesma data. Eu mesmo fiz a edição para o Mantiqueira, por questão de espaço. Meu pai nasceu em Poço Fundo, MG, em primeiro de janeiro de 1941. Faleceu em Poços de Caldas em primeiro de dezembro de 2019, devido a complicações de saúde causadas por um câncer, com o qual batalhou por quatro anos e meio.
Também escrevi o obituário do meu pai para o Jornal da Cidade, acho interessante disponibilizar aqui também uma pequena biografia mais formal. O texto foi copidescado pelo editor João Gabriel Pinheiro Chagas, adaptando-o para o estilo do jornal, e publicado em 03/12//2019, com o sobretítulo Memória Viva; aqui está o original:
Daniel da Luz nasceu em primeiro de janeiro de 1941, em Poço Fundo. Faleceu em primeiro de dezembro de 2019, no domingo, com 78 anos e onze meses. Formou-se em Contabilidade, Administração e Direito. Era conhecido pelo escritório de Contabilidade com seu nome e também exerceu a advocacia. Foi membro dos diretórios do MDB, PDT e PMDB, tendo-se candidatado a vereador em 1992. Também teve cargos em vários conselhos e entidades, como a Caldense e a ACIA. Foi professor de Contabilidade do Colégio Pio XII nos anos oitenta e noventa. Também fez parte de grupos de teatro estudantil no fim dos anos sessenta, de oposição à ditadura militar. Torcia para a Beija-Flor, Vasco e era conhecido também como contador de causos. Deixa três filhos: Daniel Souza Luz, Eurico José de Souza Luz e Fernanda Souza Luz.
Meu pai, Daniel da Luz, nos idos de 2007/2008. Salvo engano, tirei esta foto pela primeira vez em que usei uma máquina digital que não era de disquete. |
2 comments:
Daniel da Luz homem digno e excelente professor,foi o meu professor em 1989 no colégio Pio XII, pessoa maravilhosa, um ser humano fantástico e gente boníssima, eu admirava ele pela sua educação e gentileza.ass: Sidney
Muito obrigado por compartilhar sua vivência com ele, Sidney!
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