Bem,
até aqui está o que escrevi, com a ajuda da minha mãe, para constar no cartão
de lembranças que será distribuído neste final de semana, na missa de sétimo
dia do meu pai. Minha amiga Renata Chan revisou o texto para mim, assim como
esta crônica, e disse-me que se lembrou d’Os Excêntricos Tenenbaums devido à frase
a constar no epitáfio. Não assisti ao filme, mas meu papai me faz recordar
outro: Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas, do Tim Burton, baseado num
livro de Daniel Wallace, o qual ainda não li.
Meu
pai gostava de contar história de pescador, mas nenhuma delas envolvia pesca. Como
em Peixe Grande, também eu, filho mais velho, formei-me em jornalismo e não
aturava as mentiras dele. O Daniel pai era um cara inteligente. Quando eu era
criança, ele lia o Pasquim para nós, nos falava de política; sei quem é Adam
Smith e Karl Marx, o que é capitalismo e comunismo, desde a mais tenra idade.
Ainda estávamos na ditadura quando ele nos falava de Marighella e Lamarca,
assuntos tabus na época. O livro do qual meu pai mais falava era História da
Riqueza do Homem, de Leo Huberman, que era um historiador marxista; só descobri
isso agora, para minha total surpresa, ao escrever estas memórias. Isso porque
meu pai ainda nos falava muito dele quando entrou para o PMDB, no início dos
anos noventa, e passou a ter uma postura cada vez mais pragmática, fazendo-me
supor que Huberman era um autor de direita liberal, até pelo título do livro. Antes,
papai era brizolista roxo, filiado ao PDT, e gostava de afirmar que era
ex-comunista.
A
questão é que meu pai contava tanta mentira cabeluda, muitas delas envolvendo conquistas
amorosas, que caiu em descrédito comigo. Passei a ser completamente cético com
relação às histórias de seu passado de esquerdista radical, por exemplo. Até
que dois fatos me mostraram que, como em Peixe Grande, muitas vezes ele só dava
umas exageradas na verdade. Ao voltar para Poços de Caldas em 2001, depois de
formado, encontrei na casa do meu amigo Raphael Xavier um velho volume
amarelado de Marx que meu pai havia emprestado para ele. Estava datado e
assinado por ele: era de 1968, poucos meses antes do AI-5. Isso explica porque
nunca tinha visto esse livro em casa; ele o manteve bem escondido.
Naquele
ano ou no seguinte, morreu o ator Fernando Frizzo. Meu pai viu a notícia e
disse-me que ficou triste com isso, que havia feito teatro e que simpatizava
muito com ele. Ah, peraí, teatro? Não tem nada, mas nada a ver com ele. Pois
bem, e não é que meu pai fez teatro estudantil? Foi no fim dos anos sessenta. Quem
me contou foi Teresa Mesquita, educadora e prima do jornalista Luis Nassif. Um
dia, nos idos de 2003, fui entrevistá-la, ela viu meu nome e me contou que faziam
reuniões secretas, pois eram vistos como subversivos e viviam sob uma ditadura.
E faziam peças de teatro, das quais meu pai participava. Fiquei de cara, então
era tudo verdade.
Há
tantos causos dele que gostaria de retransmitir, mas o espaço reservado para
este texto está acabando. Fica aqui meu favorito: diz meu pai que ele teve uma
boate em Beagá e que um dia um sujeito estava lá aprontando uma confusão. Isso
teria sido nos anos sessenta. Ao abordar o cara e pedir para que ele parasse a
baixaria, ele teria dito “Eu sou Agnaldo Timóteo!” e meu pai teria respondido
“E daí? Eu sou Daniel da Luz!”. Isso feito, saíram pela rua trocando tiros. É
inverossímil, mas e se for real? Como dizia o cineasta John Ford: “Quando a lenda
é mais interessante que a verdade, imprima-se a lenda”.
Daniel Souza
Luz é escritor, jornalista e revisor
Hoje meu pai faria 79 anos, mas ele faleceu um mês antes. A saudade é muita. Este texto em homenagem a ele foi publicado no Mantiqueira, jornal de Poços de Caldas/MG, em 07/12/2019.
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