Wednesday, January 01, 2020

Daniel da Luz, Contador de História (versão resumida para o Mantiqueira)

Daniel da Luz foi um homem trabalhador, bom pai e alegre. Gostava de ajudar as pessoas, de rir, de contar histórias e piadas. Pediu para pôr como epígrafe no seu túmulo a inscrição “Aqui jaz o homem mais feliz do mundo”. Não chorem ao se lembrarem dele, mas sim sorriam e riam; se possível, caiam na gargalhada, ele preferiria assim. Mas lembrem-se dele, sempre.
Bem, até aqui está o que escrevi, com a ajuda da minha mãe, para constar no cartão de lembranças que será distribuído neste final de semana, na missa de sétimo dia do meu pai. Minha amiga Renata Chan revisou o texto para mim, assim como esta crônica, e disse-me que se lembrou d’Os Excêntricos Tenenbaums devido à frase a constar no epitáfio. Não assisti ao filme, mas meu papai me faz recordar outro: Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas, do Tim Burton, baseado num livro de Daniel Wallace, o qual ainda não li.
Meu pai gostava de contar história de pescador, mas nenhuma delas envolvia pesca. Como em Peixe Grande, também eu, filho mais velho, formei-me em jornalismo e não aturava as mentiras dele. O Daniel pai era um cara inteligente. Quando eu era criança, ele lia o Pasquim para nós, nos falava de política; sei quem é Adam Smith e Karl Marx, o que é capitalismo e comunismo, desde a mais tenra idade. Ainda estávamos na ditadura quando ele nos falava de Marighella e Lamarca, assuntos tabus na época. O livro do qual meu pai mais falava era História da Riqueza do Homem, de Leo Huberman, que era um historiador marxista; só descobri isso agora, para minha total surpresa, ao escrever estas memórias. Isso porque meu pai ainda nos falava muito dele quando entrou para o PMDB, no início dos anos noventa, e passou a ter uma postura cada vez mais pragmática, fazendo-me supor que Huberman era um autor de direita liberal, até pelo título do livro. Antes, papai era brizolista roxo, filiado ao PDT, e gostava de afirmar que era ex-comunista.
A questão é que meu pai contava tanta mentira cabeluda, muitas delas envolvendo conquistas amorosas, que caiu em descrédito comigo. Passei a ser completamente cético com relação às histórias de seu passado de esquerdista radical, por exemplo. Até que dois fatos me mostraram que, como em Peixe Grande, muitas vezes ele só dava umas exageradas na verdade. Ao voltar para Poços de Caldas em 2001, depois de formado, encontrei na casa do meu amigo Raphael Xavier um velho volume amarelado de Marx que meu pai havia emprestado para ele. Estava datado e assinado por ele: era de 1968, poucos meses antes do AI-5. Isso explica porque nunca tinha visto esse livro em casa; ele o manteve bem escondido.
Naquele ano ou no seguinte, morreu o ator Fernando Frizzo. Meu pai viu a notícia e disse-me que ficou triste com isso, que havia feito teatro e que simpatizava muito com ele. Ah, peraí, teatro? Não tem nada, mas nada a ver com ele. Pois bem, e não é que meu pai fez teatro estudantil? Foi no fim dos anos sessenta. Quem me contou foi Teresa Mesquita, educadora e prima do jornalista Luis Nassif. Um dia, nos idos de 2003, fui entrevistá-la, ela viu meu nome e me contou que faziam reuniões secretas, pois eram vistos como subversivos e viviam sob uma ditadura. E faziam peças de teatro, das quais meu pai participava. Fiquei de cara, então era tudo verdade.
Há tantos causos dele que gostaria de retransmitir, mas o espaço reservado para este texto está acabando. Fica aqui meu favorito: diz meu pai que ele teve uma boate em Beagá e que um dia um sujeito estava lá aprontando uma confusão. Isso teria sido nos anos sessenta. Ao abordar o cara e pedir para que ele parasse a baixaria, ele teria dito “Eu sou Agnaldo Timóteo!” e meu pai teria respondido “E daí? Eu sou Daniel da Luz!”. Isso feito, saíram pela rua trocando tiros. É inverossímil, mas e se for real? Como dizia o cineasta John Ford: “Quando a lenda é mais interessante que a verdade, imprima-se a lenda”.
Daniel Souza Luz é escritor, jornalista e revisor

Hoje meu pai faria 79 anos, mas ele faleceu um mês antes. A saudade é muita. Este texto em homenagem a ele foi publicado no Mantiqueira, jornal de Poços de Caldas/MG, em 07/12/2019.



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