Esta crônica foi publicada na página 7 da edição 7881 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG). O texto foi revisado pela Juliana Gandra antes da publicação.
Jacques Rodrigues de Carvalho
morreu aos 92 anos em 17 de novembro de 2022. Era uma pessoa boníssima, uma
figura popular, conhecido como principal nome da filantropia na cidade, além de
ser protético. Isso todo mundo em Poços de Caldas sabe. Quando eu era criança,
no entanto, não sabia nada sobre ele e morava muito perto do Pronto-Socorro de
Assistência Social Jacques. Cresci no bairro Marçal Santos, colado no Jardim do
Ginásio, onde fica a rua Comandante Ary Lopes Buono, endereço da famosa
instituição filantrópica mantida lá por décadas pelo Jacques. Bem, conforme fui
crescendo, como toda criança, comecei a me aventurar cada vez mais longe de
casa para brincar. “Longe” às vezes era uma rua abaixo, fora da vista dos meus
pais. Nos anos 1980 (não sei se o hábito permanece), noto agora que havia um
método de pais em geral, não só os meus, de tentar assustar crianças com
histórias de loucos violentos pelas ruas, com o intuito de evitar que fôssemos
longe. Lembro disso, de forma mais pronunciada, na vizinha Botelhos, cidade de
meus avós maternos, onde havia o “Joaquim Louco”, um sujeito que vagava a esmo
pelas ruas. Diziam sempre que ele ia nos pegar – para fazer o que, eu não sei.
Sei que a PM uma vez bateu no pobre Joaquim na porta da casa dos meus avós; não
esqueço da poça de sangue, do cheiro forte de ferro e de ver dois dentes caídos
na calçada. Quando contei isso para meu tio Helinho, recordo-me bem dele dizer
“Infelizmente tem gente que nasce apenas para sofrer”. Por que narro isso?
Porque o Jacques, como é de conhecimento geral, tinha para si a missão de ao
menos dirimir um pouco o sofrimento dessas pessoas. E muitas delas, ao
procurá-lo, passavam na rua Berilo, a rua abaixo da minha, que sai em frente ao
Pronto-Socorro Jacques. Nos politicamente incorretíssimos anos oitenta, claro,
pais do meu bairro tentavam dissuadir seus rebentos de brincar na rua com essas
histórias de malucos que iam nos atacar. De fato, uma vez uma pessoa em
andrajos nos xingou gratuitamente quando jogávamos bola lá e depois rumou em
direção ao Jacques. Foi só isso, inofensivo. Sempre via gente muito humilde, pessoas
em situação de rua, às vezes descalços, caminhando na rua Berilo e depois os
via na porta do Jacques. Isso me atiçou a curiosidade, perguntei sobre ele para
meu pai, que me disse que Jacques era um protético espírita que ajudava muita
gente. Na minha imaginação infantil, achava que ele era francês, por causa do
nome. E que era alguém muito alto, forte, que carregava desvalidos nos braços.
Passei a jogar futebol até mesmo na rua Nico Duarte, quase ao lado do Jacques,
e nada de vê-lo. Vai ver o vi, mas como ele não se encaixava na minha
imaginação, passou batido. Veio a adolescência, fui morar fora, voltei adulto.
Tinha quase 30 anos e um dia me toquei que não fazia a menor ideia de como era
o Jacques. Dei um jeito de inventar uma pauta só para marcar uma entrevista com
ele. E que surpresa! Era um senhorzinho franzino, vestido todo de branco,
simpático e que parecia sempre estar com pressa. Ressalto que não era
estressado ou ríspido. Precisava fazer algo ou ajudar alguém, justificou. Então
aquele era o lendário Jacques. Um dos raros casos que a realidade era melhor do
que a lenda.
Daniel Souza Luz é jornalista,
professor, escritor e revisor
Jacques Rodrigues de Carvalho em dezembro de 2021. A foto foi tirada por Tokinho Carvalho, sobrinho dele, que me autorizou a reproduzir a foto aqui. |
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