- Pai, o senhor pode voar igual ao Super Homem?
- Posso.
- Então voa.
- Não quero.
- Por quê?
- As pessoas podiam ficar com inveja, e não quero que elas saiam voando por aí. Pior do que um invejoso, só um invejoso voador.
Nunca menti para meu filho. Mas toda vez que sou sincero com minha esposa, chamas envolvem o meu estômago.
- Amanhã ele vai à missa comigo.
- Você vai transformá-lo em um robô.
- Não somos idiotas, e nem seu filho – nosso filho! – será...
- Ele deveria escolher se quer ir, ou não, quando for adulto.
- Mas...
- Não sei porque casamos. Um par de coisas fundamentais não se encaixa entre nós.
Minha língua funcionou como um lancha-chamas. E ela se queimou mesmo. Não devia deixar algo tão abrasivo escapar. Estávamos todos de mau humor, e mais cedo ou mais tarde ela inventaria uma desculpa qualquer para sair pelo mundo. Nós berramos desvairadamente naquela noite. Tanto o vizinho de cima quanto o debaixo reclamaram na portaria.
- Você não pode gritar com seu filho! Nem se ele gritar. Nunca!
Me levou tudo e deixou apenas uma foto. Um carola casou com ela. A guarda do garoto foi dada à mãe. Os três acabaram dentro de um ônibus, em um precipício, quando iam para Aparecida.
Tentei fazer uma escultura de nós três, a partir da foto. Pelo menos teria mais uma lembrança material. Pareceríamos tão feios se a concluísse que nem chorei ao rebentá-la contra a parede. Fiquei é sem ar. Novamente me deparei com a imagem de Júnior decapitado.
A vida ficou fora de controle.
Ponho meio corpo fora da janela, puxando o mormaço para dentro dos pulmões. Como se estivessem sendo compactados pela atmosfera, enquanto o tórax entra em combustão.
Há anjos desenhados no playground. O céu é lá. Encontrarei minha mulher, meu filho. Hora de voar. Não me preocuparei mais com os invejosos.
Esse miniconto foi publicado no número 11 do jornal PapoArte, há três anos, e já o havia reproduzido no meu blog Humano Obsoleto pouco dias depois da publicação. Foi apenas um exercício para uma oficina de literatura ministrado para a escritora Ana Miranda, mas creio que é um dos melhores textos que já consegui escrever e um dos meus favoritos. Lembro-me de duas reações ao conto que me agradaram: uma amiga leu o jornal, me encontrou na rua e disse-me que adorou; um amigo me disse que amigos dele que eram muito carolas não gostaram.
- Posso.
- Então voa.
- Não quero.
- Por quê?
- As pessoas podiam ficar com inveja, e não quero que elas saiam voando por aí. Pior do que um invejoso, só um invejoso voador.
Nunca menti para meu filho. Mas toda vez que sou sincero com minha esposa, chamas envolvem o meu estômago.
- Amanhã ele vai à missa comigo.
- Você vai transformá-lo em um robô.
- Não somos idiotas, e nem seu filho – nosso filho! – será...
- Ele deveria escolher se quer ir, ou não, quando for adulto.
- Mas...
- Não sei porque casamos. Um par de coisas fundamentais não se encaixa entre nós.
Minha língua funcionou como um lancha-chamas. E ela se queimou mesmo. Não devia deixar algo tão abrasivo escapar. Estávamos todos de mau humor, e mais cedo ou mais tarde ela inventaria uma desculpa qualquer para sair pelo mundo. Nós berramos desvairadamente naquela noite. Tanto o vizinho de cima quanto o debaixo reclamaram na portaria.
- Você não pode gritar com seu filho! Nem se ele gritar. Nunca!
Me levou tudo e deixou apenas uma foto. Um carola casou com ela. A guarda do garoto foi dada à mãe. Os três acabaram dentro de um ônibus, em um precipício, quando iam para Aparecida.
Tentei fazer uma escultura de nós três, a partir da foto. Pelo menos teria mais uma lembrança material. Pareceríamos tão feios se a concluísse que nem chorei ao rebentá-la contra a parede. Fiquei é sem ar. Novamente me deparei com a imagem de Júnior decapitado.
A vida ficou fora de controle.
Ponho meio corpo fora da janela, puxando o mormaço para dentro dos pulmões. Como se estivessem sendo compactados pela atmosfera, enquanto o tórax entra em combustão.
Há anjos desenhados no playground. O céu é lá. Encontrarei minha mulher, meu filho. Hora de voar. Não me preocuparei mais com os invejosos.
Esse miniconto foi publicado no número 11 do jornal PapoArte, há três anos, e já o havia reproduzido no meu blog Humano Obsoleto pouco dias depois da publicação. Foi apenas um exercício para uma oficina de literatura ministrado para a escritora Ana Miranda, mas creio que é um dos melhores textos que já consegui escrever e um dos meus favoritos. Lembro-me de duas reações ao conto que me agradaram: uma amiga leu o jornal, me encontrou na rua e disse-me que adorou; um amigo me disse que amigos dele que eram muito carolas não gostaram.
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