Invasão de propriedade. Nunca vimos como maldade ou crime. Criança não
conhece essas fronteiras. Sabem que elas existem, mas se não estragamos nada,
qual o problema? Nos anos oitenta, com o fim da ditadura, tudo tinha cheiro de
liberdade.
Uma das melhores lembranças que tenho da época é pular dentro do pátio
de uma loja de pneus e artigos automotivos que ficava fechada do sábado à tarde
até a segunda de manhã e ficarmos andando de skate no cimento liso daquele
lugar tranquilo, que até hoje permanece o mesmo, pois, claro, nunca estragamos
nada, não queríamos ser descobertos e repreendidos – ainda tenho vontade de
pular lá dentro, sei que continua igual, pois sou cliente da loja. Em 2014
cheguei a andar de skate no pátio aberto na frente, que também é grande e
propicia bons rolês, mas não tem tanta graça quanto pular aquele muro. Mas
deixa isso pra lá, também me lembro de amigos relatarem que a Cida Caselli deu
um apavoro neles quando pularam lá, há quase trinta anos. Ela ainda tem muitos
fãs por aí e já não sou mais tão novinho para ser tão desajuizado.
No mesmo quarteirão dessa loja, o de baixo de onde eu morava, no bairro
Marçal Santos, tinha uma fábrica de chocolates na qual ia, quando criança, com
a minha mãe; lá, os funcionários sempre me davam bombons! Não bastasse essa
ótima memória, há outra. Uns dez anos depois, nos idos de 1989, como esta
famosa fábrica, a Milktex, faliu, eu, meu irmão e um amigo já falecido, o
Maurício Rodrigues, resolvemos ver o que havia por trás dos muros. Que surpresa:
tinha uma piscina vazia lá dentro! Ou um tanque azulejado, não sei por que
haveria uma piscina ali. Com uma parede curva, que acompanhava a esquina, pois
a piscina ficava num canto da fábrica. Não havia transição, tínhamos que andar
lá dando wall rides (manobra que consiste em lançar o skate contra a parede e
andar brevemente nela, na vertical). Claro que pulamos o muro. Era divertido,
mas fomos pouco lá, pois não éramos tão bons nisso e havia o medo de sermos
apanhados. Foi o mais perto que já cheguei de andar de skate em uma piscina
como as da Califórnia – é uma pena mesmo as daqui não ter transições. Quando
penso nisso, parece um sonho, de tão fantástico que foi; líamos nas revistas de
skate sobre os secret spots, lugares segredos que um grupo de skatistas jamais
contava para os outros, e aquele era o nosso.
Andar de bike e entrar em fazendas ou áreas de represa ou usinas de
força (ou algo assim) era mato – literalmente também. Fazíamos isto
constantemente à época. O problema sempre foram os arames farpados, alguns
enferrujados. Um de nós às vezes se enroscava. Bons tempos, – sei que essa
expressão é clichê, fazer o quê? – mas bons tempos mesmo em que as grandes
enroscadas eram essas.
Colin Newman, do Wire, ao vivo em 2011, em Chicago, Illinois, Estados Unidos. Foto de Gina Collecchia, via Flickr/Creative Commons - licença para uso sem fins lucrativos. |
Esta crônica foi publicada no Jornal da Cidade, Poços de Caldas, em sete de setembro de 2017. O título é uma homenagem ao grupo britânico de art punk/pós punk Wire. Cheguei a titular a crônica como Arame Farpado, mas o editor do jornal, João Gabriel Pinheiro Chagas, preferiu o título original e ficou uma homenagem literal mesmo à banda. Trata-se de uma versão reescrita e ampliada da crônica que se chama Wire mesmo, publicada neste blog em 14 de dezembro de 2015. Para quem não é poços-caldense: Cida Caselli era uma comissária de menores, já falecida, que tocava o terror em crianças e adolescentes da cidade nos anos oitenta, portanto antes do surgimento do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Conselho Tutelar. A foto que ilustra o texto foi originalmente publicada no Flickr e a usei devido a uma licença Creative Commons.
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