A descoberta do The Smiths foi
inesquecível para mim. Como inúmeras bandas dos anos oitenta, cheguei atrasado.
Tudo bem, era pré-adolescente à época. Num belo dia – ou, melhor dizendo, numa
sombria tarde – liguei a TV Cultura e o Kid Vinil, que infelizmente faleceu
neste ano, anunciou numa chamada, em tom lúgubre, que apresentaria um especial
chamado The Smiths Are Dead. Passava um trechinho de uma música de fundo, creio
que de The Boy With The Thorn In His Side, embora não me lembre com certeza.
Foi o suficiente para captar minha atenção, pois me apaixonei pela harmonia. À
primeira audição.
Hoje imagino, caso tenha a
oportunidade de rever esse especial, que acharia a abertura datada, mas à época
me impressionou fortemente: uma montagem em computador, com cores fortes, de um
cemitério exibindo uma tumba com a inscrição The Smiths. Fora engano, havia a
data da existência da banda gravada no túmulo: 1982-1987. No início do programa,
Kid Vinil avisou que os Smiths haviam acabado de encerrar suas atividades.
Como o grupo terminou ao lançar o
disco Strangeways, Here We Come, em setembro de 1987, aquele especial foi no
final daquele ano, quando eu tinha doze primaveras ou já havia recém-completado
treze anos. A sequência de videoclipes foi matadora, foi sorte ter contato com
esse material em tenra idade. O clipe da já mencionada The Boy... era o menos
interessante deles, mas servia para saber como os integrantes eram, pois não
tem nada além deles tocando num pequeno cômodo. Os demais são obras-primas; por
mais que essa palavra seja desgastada, não há outra para qualificar tamanhas
preciosidades.
Por uma hora, assisti,
hipnotizado, clipes como os de Girlfriend In a Coma, There´s a Light That Never
Goes Out, Ask, How Soon Is Now e outras músicas que hoje são clássicas. Anos
depois, descobri que vários destes vídeos foram dirigidos pelo cineasta Derek
Jarman. Em alguns ele usa o já naquela época superado formato super-8. O efeito
é arrebatador; embora ainda tivesse o inglês incipiente, percebi que How Soon
Is Now evocava um amor inatingível. As imagens da belíssima modelo loira de
cabelo chanel, de trechos desfocados de show, das chaminés de uma indústria
muito poluente, sugeriam algo inatingível – inclusive para mim. As camadas de
guitarra e a ambiência misteriosa do som arrematavam as imagens de forma
mesmerizante. É muito curioso que minha relação com a música seja tão
influenciada pelo audiovisual, muitos anos antes da estreia da MTV no Brasil.
As canções dos Smiths sobrevivem
também sem a lembrança dos vídeos. A delicadeza das melodias, o vocal inaudito
e inconfundível de Morrissey, o lirismo arrebatador das letras redundam numa
banda única. Ainda bem que nunca houve uma volta, por mais que talvez gostasse
de ver. Tiveram uma carreira intensa, sem nenhum disco ruim. Ao menos vi uma apresentação
do guitarrista Johnny Marr em 2015, no festival Cultura Inglesa. Ele tocou
várias músicas dos Smiths, o vocal dele não comprometeu e, para minha completa
surpresa, conseguiu reproduzir aquela sonoridade fantástica de How Soon Is Now
ao vivo. Não é pouco, há bandas indies posteriores aos Smiths, da chamada
geração shoegaze, que não conseguem fazer ao vivo alguns efeitos que obtinham
em estúdio; consta que é o caso do My Bloody Valentine e constatei isto
pessoalmente num show do Swervedriver, no ano passado.
Aquele especial The Smiths Are
Dead também me marcou por outro motivo. A TV ficava na sala, não havia outra.
Bem na hora em que o especial estava passando, uma menininha que havia se
mudado naquele final de semana para o prédio em que morava foi brincar com
minha irmã Fernanda no nosso apartamento. Fiquei pistola com a algazarra e os
gritinhos dela e as enxotei da sala. É por isso que sei e sempre digo para a
minha amiga Ana Karla Rodrigues que a conheço e a sua família – era a irmã
dela, Paulinha, que estava bagunçando minha experiência com os Smiths – desde
1987. Ou seja, somos amigos há exatamente três décadas.
Daniel Souza Luz é
jornalista e revisor
Minha coleção em vinil dos Smiths. Todos foram presentes da minha mãe, adquiridos num sebo de Beagá. |
Esta crônica foi originalmente publicada em 16 de dezembro de 2017 no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG). Foi a minha primeira crônica inédita em meses, as anteriores foram versões retrabalhadas de crônicas que publiquei neste blog. Esta versão foi revisada e corrigida; na original grafei incorretamente Thorn (escrevi "The Boy With The Torn in His Side") e cometi um erro factual: não vi um vídeo de Panic (há versão ao vivo), mas sim o de Ask. Também substitui o verbo "acabou" por "terminou" no início do segundo parágrafo, para não deixar a leitura cansativa.
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