Lembro ternamente de um
caminhãozinho que ganhei quando era criança, azul metálico com a caçamba
laranja. Não existem caminhões assim, por isso gostava tanto dele, creio. A
caçamba era funcional, gostava de carregar pequenos objetos nela e
descarregá-la.
Quando minha mãe passou a
permitir que brincássemos na rua, tive a ideia de fazer uma fazendinha. Eu e
meu irmão pegamos uma casinha de brinquedo, pegamos pedacinhos de grama,
palitos, fósforos e fizemos uma plantação diversa em torno da sede. Já havia
aprendido na escola que monoculturas fazem mal para o solo. Colhíamos a safra e
embarcávamos no caminhão até um depósito imaginário. Tudo isso na parte de
terra de um gramado, hoje cimentado, no predinho em que morávamos na rua
Platina.
Não era o quintal do prédio.
Estávamos expostos. Não demorou tanto e chegou um moleque da rua de cima
querendo intimar. À toa, só porque era maior e riquinho mal-educado. Parou sua
bicicleta ao nosso lado e passou a tirar a sarro. “Estão brincando de casinha
igual menininha”, ficou repetindo, com sorrisinho de mofa. Expliquei que não era de casinha, era de
fazendinha. “É a mesma coisa, brincadeira de menina”, continuou com a
babaquice, nos desestimulando. Obviamente era uma brincadeira diferente; hoje não
me ofenderia, pena que não brinco mais, para poder bater o pé.
Os papéis de gênero são bem
cristalizados nas cabeças das crianças pelos pais. Mesmo se fosse de casinha, e
daí? Não afeta em nada a masculinidade, como poderia? Mas o pentelho estava lá,
há mais de trinta anos, nos aporrinhando gratuitamente. Do outro da rua, para
nossa sorte, morava um moleque ainda mais velho, o Neto, que já devia ter uns
treze, quatorze, quinze anos. Foi um Deus Ex Machina naquele dia para nós.
Enquanto outros moleques se aglomeravam para tomar parte do escárnio e já
estávamos a ponto de recolher nossos brinquedos, ele atravessou a rua para ver
o que estava pegando. Quando ele tomou conhecimento do que acontecia, se virou
para o riquinho e fulminou: “Do que você está falando, seu idiota? É maior fera
a fazendinha deles, não é brincadeira de casinha”. Nunca me esqueci disto. E
fez o riquinho descer da bicicleta e brincar conosco. Não gostei muito dele
participar da brincadeira, mas gostei demais dele calar a boca, humilhado. Foi
genial. Vai ver que é por isso, também, que hoje em dia ele é uma pessoa
melhor. O Neto se mudou pouco depois, nunca soube o nome dele para agradecê-lo.
Daniel Souza Luz é
jornalista e revisor
Esta crônica foi publicada no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em 30 de junho de 2018. A escrevi de supetão no dia anterior e já a enviei. Traz muitas reminiscências queridas da infância e uma reflexão à luz do atual debate dos papéis de gêneros na infância, inspirado numa palestra da minha amiga Andréa Benetti a respeito da Judith Butler. O título é uma homenagem ao Big Boys, uma estupenda e inclassificável banda de skate rock, que transitava com desenvoltura e extrema criatividade pelo punk, funk, hardcore e pós punk. Não bastasse isto, surgiram no ultraconservador Texas, no fim dos anos setenta, tendo como vocalista uma drag queen skatista e gordo, Randy "Biscuits" Turner, que sofreu homofobia na cena machona do hardcore dos anos oitenta. Um grupo sui generis, predecessor do Red Hot Chilli Peppers e do Suicidal Tendencies, que tiveram muito mais sucesso.
Um dos símbolos dos Big Boys. Muita informação sobre a banda pode ser encontrada no site http://www.soundonsound.org/ - no qual peguei esta imagem. |
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