Wednesday, July 04, 2018

Grandes Garotos

Lembro ternamente de um caminhãozinho que ganhei quando era criança, azul metálico com a caçamba laranja. Não existem caminhões assim, por isso gostava tanto dele, creio. A caçamba era funcional, gostava de carregar pequenos objetos nela e descarregá-la.
Quando minha mãe passou a permitir que brincássemos na rua, tive a ideia de fazer uma fazendinha. Eu e meu irmão pegamos uma casinha de brinquedo, pegamos pedacinhos de grama, palitos, fósforos e fizemos uma plantação diversa em torno da sede. Já havia aprendido na escola que monoculturas fazem mal para o solo. Colhíamos a safra e embarcávamos no caminhão até um depósito imaginário. Tudo isso na parte de terra de um gramado, hoje cimentado, no predinho em que morávamos na rua Platina.
Não era o quintal do prédio. Estávamos expostos. Não demorou tanto e chegou um moleque da rua de cima querendo intimar. À toa, só porque era maior e riquinho mal-educado. Parou sua bicicleta ao nosso lado e passou a tirar a sarro. “Estão brincando de casinha igual menininha”, ficou repetindo, com sorrisinho de mofa.  Expliquei que não era de casinha, era de fazendinha. “É a mesma coisa, brincadeira de menina”, continuou com a babaquice, nos desestimulando. Obviamente era uma brincadeira diferente; hoje não me ofenderia, pena que não brinco mais, para poder bater o pé.
Os papéis de gênero são bem cristalizados nas cabeças das crianças pelos pais. Mesmo se fosse de casinha, e daí? Não afeta em nada a masculinidade, como poderia? Mas o pentelho estava lá, há mais de trinta anos, nos aporrinhando gratuitamente. Do outro da rua, para nossa sorte, morava um moleque ainda mais velho, o Neto, que já devia ter uns treze, quatorze, quinze anos. Foi um Deus Ex Machina naquele dia para nós. Enquanto outros moleques se aglomeravam para tomar parte do escárnio e já estávamos a ponto de recolher nossos brinquedos, ele atravessou a rua para ver o que estava pegando. Quando ele tomou conhecimento do que acontecia, se virou para o riquinho e fulminou: “Do que você está falando, seu idiota? É maior fera a fazendinha deles, não é brincadeira de casinha”. Nunca me esqueci disto. E fez o riquinho descer da bicicleta e brincar conosco. Não gostei muito dele participar da brincadeira, mas gostei demais dele calar a boca, humilhado. Foi genial. Vai ver que é por isso, também, que hoje em dia ele é uma pessoa melhor. O Neto se mudou pouco depois, nunca soube o nome dele para agradecê-lo.
Daniel Souza Luz é jornalista e revisor

Esta crônica foi publicada no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em 30 de junho de 2018. A escrevi de supetão no dia anterior e já a enviei. Traz muitas reminiscências queridas da infância e uma reflexão à luz do atual debate dos papéis de gêneros na infância, inspirado numa palestra da minha amiga Andréa Benetti a respeito da Judith Butler. O título é uma homenagem ao Big Boys, uma estupenda e inclassificável banda de skate rock, que transitava com desenvoltura e extrema criatividade pelo punk, funk, hardcore e pós punk. Não bastasse isto, surgiram no ultraconservador Texas, no fim dos anos setenta, tendo como vocalista uma drag queen skatista e gordo, Randy "Biscuits" Turner, que sofreu homofobia na cena machona do hardcore dos anos oitenta. Um grupo sui generis, predecessor do Red Hot Chilli Peppers e do Suicidal Tendencies, que tiveram muito mais sucesso.

Um dos símbolos dos Big Boys. Muita informação sobre a banda pode ser encontrada no site http://www.soundonsound.org/ - no qual peguei esta imagem. 

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