Era uma daquelas típicas frias
manhãs poços-caldenses que parecem deslocadas, sob o sol alto no céu alijado de
nuvens proporcionando um calor ínfimo; aquela sensação de que morava em
Ganimedes ou em Io, longe demais, longe demais. Viver insulado em um grande
satélite nos anos oitenta fazia com que me apegasse muito a qualquer artefato
de civilizações distantes. Naquela manhã encontrei um numa calçada da rua
Berilo, na parte baixa do Marçal Santos, o bairro da minha infância. Era uma
fita cassete ordinária, sem a caixa, sem nome do dono ou qualquer indicação do
conteúdo, mas nitidamente usada.
Peguei-a e esperei. Ninguém
apareceu para reclamá-la. Era paciente, tinha tempo, estava com apenas 14 ou 15
anos. Subi a rua onde morava, a Platina, postei-me estrategicamente numa sombra
e observei por muito tempo se alguém passava procurando algo no chão perto de
onde estava na Berilo. Nada. Era minha, era justo. Estava curioso, coloquei-a
no toca-fitas assim que pude. Tinha muita musiquinha sem graça da acid house
então em voga. Era dance music bem genérica mesmo; só reconheci o Konkan, uma
banda de tecnopop que lembrava um New Order anêmico.
No meio de tanta batida dançante
que não dava vontade de se mexer, no entanto, reluziu um tesouro. Era um som
com camadas hipnotizantes de sintetizadores, bateria eletrônica e então surgia
aquele baixo gordo, potente, destacado. O vocal, distante, contido, deixa mais
dúvidas ainda; tudo parece muito também o New Order, a banda que dominava o
rádio à época, mas com a audição entrei no Vale da Estranheza: algo estava fora
do lugar, aqueles belos backing vocals femininos não se encaixavam, a energia e
a criatividade futurista se assemelhavam, mas estava diante de outro ente. Não
era uma cópia, parecia um clone robótico que havia assimilado os maneirismos do
original e criado personalidade própria.
Perdi a fita numa mudança, mas
nunca me esqueci da longa odisseia daquela música. A batida e os acordes foram
entranhados no meu DNA. Não havia informação nenhuma que pudesse recuperar ou
acessar que não fosse essa memória. Haveria de ser paciente.
Em 1996, seis ou sete anos
depois, o mistério começou a se desvanecer. Quando meu amigo Daniel Ferreira,
que cursava Arquitetura na Unesp, pediu para morar na mesma república em que eu
e meu irmão morávamos, ele me emprestou várias fitinhas. Finalmente pude ouvir
Misfits, músicas da Siouxsie and the Banshees que ainda não conhecia e numa
delas uma que fez meu coração bater forte e compassadamente, como um
marca-passo remoto: Inspiration, do Section 25, era o nome daquela joia
cibernética que havia encontrado numa calçada por onde minha infância havia
caminhado antes.
Tudo fez sentido,
maravilhosamente. Ainda me lembrava de uma resenha do jornalista e escritor
Alex Antunes na extinta revista Bizz, na qual ele explicava que a imprensa
oitentista acusava o Section 25 de ser uma mera cópia do Joy Division e do New
Order, mas que não era bem assim: nas suas palavras, era antes uma banda-irmã
dos dois grupos de Manchester, assumidamente influenciado. O mais incrível de
tudo, para mim, é que tiveram o primeiro compacto produzido por Ian Curtis, o
vocalista do Joy Division, minha banda favorita, meses antes de seu suicídio. A
relação era tão umbilical que me recordo que ao ler a biografia Touching From a
Distance, de Deborah Curtis, ri ao descobrir que o poeta e mito Ian Curtis
ficou com um olho roxo ao se meter numa briga num show do Section 25, sendo,
enfim, um humano como qualquer outro.
A fita que o Daniel gravou
deixava clara a ligação: as músicas no começo soam como o Joy Division,
lúgubres, etéreas, intocáveis, e vão paulatinamente tornando-se mais tecnopop e
dançantes, como o New Order. O advento da internet, no entanto, fez-me
descobrir que isso foi outro mito que carreguei comigo por muitos anos. Ainda
que o single e as primeiras músicas do Section 25 atravessem sendas pouco
iluminadas, as músicas que mais se assemelham ao Joy Division, como Beneath the
Blade, estão no disco mais pop. Meu xará gravou tudo fora de ordem numa coletânea
muito pessoal naquela fita; gostaria de retomar o contato com ele,
possivelmente este era o intuito dele, ouvir com a sensação de uma evolução
sonora que na prática não ocorreu, pois o grupo é muito confuso. Aliás, existe
até hoje, com a filha dos vocalistas, já falecidos, à frente dos músicos, quase
como um Demônios da Garoa do Velho Mundo, mal comparando. E Looking from a
Hilltop é que foi o grande hit deles; no Youtube, descobri que Inspiration foi
um sucesso nas casas noturnas góticas da noite paulistana nos anos 1980 e só
lá. Algum DJ deve ter gostado dela mais do que outras e por algum motivo foi
parar naquela fitinha esquecida na rua e que me inspira ternas recordações há
anos.
Daniel Souza Luz é
jornalista e revisor
Seção 25 foi publicada em 28 de julho de 2018 no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG). Escrevi a crônica no dia anterior e o título, evidentemente, alude ao grupo Section 25.
Seção 25 foi publicada em 28 de julho de 2018 no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG). Escrevi a crônica no dia anterior e o título, evidentemente, alude ao grupo Section 25.
Capa do single Charnel Ground/Haunted, lançado na Bélgica, em 1980, pela Factory Benelux. Foto de Jim Barker, via licença Creative Commons. |
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