Um retrato na cômoda emoldura uma
presença incorpórea. Há quem se sinta ofendido ao entrar na sala. Tantas
décadas depois, ainda insistindo nisso. O pai morreu desgostoso, sem concordar
com a ideologia do filho até o fim, sem concordar com a sua ausência espontânea
e, sobretudo, sem concordar com sua ausência forçada. Jamais admitida por quem
a provocou. Todos sabem quem foi, às vezes o responsável aparece no noticiário,
com a cara de quem dormiu gostoso ao roubar as horas de sono alheias. Hoje foi
a vez da mãe também se ir, sem nunca saber o que aconteceu com aquele filho idealista
do qual ela se orgulhava, mesmo sem compreender o que exatamente todos aqueles
discursos inflamados diziam. Até o último dia pressionou para que a verdade
viesse à tona. O retrato será enterrado com ela.
Daniel Souza Luz é
jornalista e revisor
Este conto foi publicado aqui no blog em 28 de março de 2012, como parte da blogagem coletiva #DesarquivandoBr. Vi meu amigo Tadeu Rodrigues, romancista e poeta, falando a respeito no Twitter e quis participar, pois o tema dos desaparecidos políticos me comove. Achei por bem republicá-lo no Jornal da Cidade agora, devido ao recrudescimento da extrema-direita no país, para que um assunto desta gravidade jamais seja esquecido ou minimizado. O negacionismo, seja do Holocausto, seja de qualquer outra mortandade, nunca pode ser tolerado. Revisei levemente o breve conto e o jornal o publicou no feriado do dia 15 de novembro de 2018.
O título é Luta Amada mesmo e não Armada, pois refere-se aos familiares dos desaparecidos e sua busca pelos seus entes queridos, e não à luta armada - nem todas as pessoas assassinadas pela ditadura, desaparecidas ou não, pegaram em armas para resistir ao golpe militar. Recomendo a leitura do Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a Partir de 1964, publicado nos anos noventa pelas imprensas oficiais de Pernambuco e São Paulo, para se saber mais sobre como foi a vida dessas pessoas. Há muito mais obras a respeito. Livros como Olho por Olho (os livros secretos da ditadura), de Lucas Figueiredo, e Mulheres que Foram à Luta Armada, de Luiz Maklouf Carvalho, relatam igualmente crimes tanto da extrema-direita, a maioria usando o aparato estatal, como da extrema-esquerda, mas os pesquisam e os contextualizam; qualquer comentário aqui que use a teoria dos dois demônios (a de que os dois lados eram iguais) será sumariamente apagado, pois também é intolerável.
Além disso, como costuma constar das peças do Ministério Público Federal contra torturadores e assassinos dos aparelhos repressivos, os crimes da ditadura civil-militar foram "cometidos no contexto de um ataque sistemático e generalizado contra a população civil brasileira, promovido com o objetivo de assegurar a manutenção do poder usurpado em 1964, por meio da violência". A repressão da ditadura enterrou seus mortos, nem todo familiar dos esquerdistas teve esse direito, e relembro: parte dos mortos e desaparecidos estava envolvida na resistência pacífica à tirania de então, não tendo cometido qualquer crime.
Além disso, como costuma constar das peças do Ministério Público Federal contra torturadores e assassinos dos aparelhos repressivos, os crimes da ditadura civil-militar foram "cometidos no contexto de um ataque sistemático e generalizado contra a população civil brasileira, promovido com o objetivo de assegurar a manutenção do poder usurpado em 1964, por meio da violência". A repressão da ditadura enterrou seus mortos, nem todo familiar dos esquerdistas teve esse direito, e relembro: parte dos mortos e desaparecidos estava envolvida na resistência pacífica à tirania de então, não tendo cometido qualquer crime.
Luta Amada na versão impressa do Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG), ao fim da página 10 e com o título errôneo. |