Friday, December 28, 2018

O Monstro em cima da cama

O beijo assusta. Desejava-o, mas não tem sentido. Após todos esses anos querendo-a em silêncio sofrido tinha certeza de que ela havia percebido seus olhares platônicos e os desprezado olimpicamente. Retribui-o por instinto.
Ela então pergunta se ele trouxe o vinil do Joy Division que ficou de ouvirem juntos. Isso aconteceu em um sonho. Que ele não contou para ninguém. Nem sequer tem CDs do Joy Division. “Não, esqueci”. Sorri desconcertado. “Você está tão pálido”. Sonha com ela há três dias. Teve poluções noturnas, o que não acontecia desde a adolescência. Parecia real. É real, agora, mas não parece.
Ao longo do dia procura amigos com quem sonhou. Seus sonhos têm se passado somente à noite, não há mais sol no seu mundo onírico, que se tornou realista e minucioso, e neles tem a autoconfiança que sempre lhe faltou. Todos se lembram das conversas e riem de novo das piadas que contou.
À noite ruma lépido para casa. Agacha-se e olha embaixo da cama. Seu duplo o encara, arrasta-se para o meio do quarto, levanta-se e sorri com desdém. É ligeiramente mais alto, pois não é curvado. Bronzeado, mais forte. Faz sentido. Ele encolhe-se debaixo da cama para de lá nunca mais sair. Agora tem a vida com a qual sempre sonhou.

Daniel Souza Luz é jornalista e revisor

Escrevi o pequeno conto (ou miniconto, fica ao gosto do freguês) O Monstro em cima da cama para um concurso e o publiquei aqui no blog há mais de oito anos, em nove de junho de 2010. O revisei e reescrevi de leve para publicação na edição do Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) de 22 de dezembro de 2018. Disse na postagem original, na qual dou mais detalhes sobre o concurso, que pretendia ampliar o conto ao reescrevê-lo, mas relendo-o apenas fiz algumas alterações e não senti ganas de mexer na história, já havia contado o que queria. Uma curiosidade sobre tecnologia: no original falava em DVD, que caiu em desuso, e para publicá-lo num jornal em 2018 e não parecer datado tive que resgatar o bom e velho vinil. 


O conto O Monstro em cima da cama publicado no pé da página oito da edição 6944 do Jornal da Cidade. 

Thursday, December 06, 2018

Farsa

O livro repousa na estante.
Na verdade, jaz na estante. Está autografado por Augusto de Campos. Em nome do casal, não apenas dela.
Ele sempre se lembra das acusações de que não lia de fato, de que apenas frequentava redes sociais. Então lhe ocorreu que havia o livro, uma preciosidade, o qual ela jamais mencionava, e que se recusou a devolver.
Encontram-se no bate-papo, pois estavam online. Só assim mesmo.
Ele lembra-a sobre a obra. De fato, ela jamais havia lido-a. Confundiu Haroldo com Augusto - por mais que tivesse veleidades literárias, ela continuava a embaralhar nomes e conceitos, pois havia apenas lia na Wikipédia a respeito da maioria dos autores que citava, mas não havia enfrentado-os de fato. De certa forma, os dois se assemelhavam quanto à parca leitura de livros. Ela sequer se lembrava que o tinha.
O uso dos verbos no passado é correto neste caso.
O livro, novo, nunca lido, está criando poeira em um sebo.


Daniel Souza Luz é jornalista e revisor

Este conto foi publicado no dia primeiro de dezembro de 2018 no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG). Publiquei-o originalmente aqui no blog em 11 de janeiro de 2015. Estava em São Paulo na semana passada, meu pai havia sido internado com uma crise hipertensiva e fiquei sem tempo para escrever um novo texto ou reescrever alguma crônica ou conto antigos. Portanto, saiu no jornal tal qual a publicação original. A versão acima é diferente da original e da que saiu no jornal; a reescrevi, alterando uns poucos detalhes e principalmente deixando o texto menos impreciso.
O pequeno conto no canto esquerdo inferior da página oito da edição 6929 do Jornal da Cidade, numa versão idêntica à de 2015, embora tenha saído na versão impressa do jornal agora em 2018.