Thursday, September 26, 2019

O Auto da Compadecida - minhas impressões.

Auto da CompadecidaAuto da Compadecida by Ariano Suassuna
My rating: 5 of 5 stars

Li de uma vez só. Na verdade, li em voz alta, para meu pai, que não enxerga quase mais nada. Contando o tempo de leitura do prefácio, que foi lido depois, também para ele, não levou mais do que três horas. Já tínhamos assistido ao filme dirigido pelo Guel Arraes há uns dez anos, à época passou batido para mim; acho que meus familiares já tinham visto até antes, quando foi exibido em forma de minissérie. O texto é muito prazeroso de ser lido em voz alta, afinal foi concebido para o teatro. O que chamou minha atenção, em primeiro lugar, foram as referências das histórias populares que Suassuna cita no preâmbulo; apesar dele ser cristão e conservador, ele não tem pejo em usar passagens escatológicas e me parecem que bem blasfemas, pois também abordam traição e sexo. O ótimo prefácio, de Henrique Oscar, traça as origens disto em textos medievais, nas quais Nossa Senhora também tem papel fundamental na salvação de almas. Ou seja, pode escandalizar carolas, mas é uma obra fundada em narrativas católicas populares que refletem a profunda religiosidade do autor. Outro aspecto que me chamou a atenção é que no livro João Grilo é mais violento e maquiavélico do que me lembro dele ser no filme; parece-me bem normal isto ter sido atenuado no roteiro, pois dificultaria a identificação do público com o personagem. Enfim, um livro divertidíssimo, rápido de ser lido e que não é uma leitura superficial, pelo contrário, também há reflexões assertivas e precisas sobre racismo e gênero, uma surpresa enorme vinda de um autor assumidamente conservador.
Daniel Souza Luz
Texto que escrevi para a rede social Good Reads.


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Thursday, September 05, 2019

Como sobreviver a uma briga num show de punk rock

Hoje, dia da independência, é uma ocasião especial na minha memória afetiva. Remete a uma noite cuja data exata ignoro, apenas tenho o registro de que foi em 1997. É que há uma música do Down By Law, grupo de hardcore dos anos noventa, que narra quase exatamente uma aventura pela qual passei. Ela se chama Independence Day e a letra fala de uma treta num show de punk rock, sem mencionar datas, mas deve ter sido num quatro de julho, a independência dos gringos.
“Bem, os moleques chegam no pico e a merda bate no ventilador/Muita segurança, mas pouca maturidade/A banda subiu no palco/Os garotos estavam furiosos”, começa a letra. Há 22 anos eu cursava Jornalismo no campus da Unesp Bauru e frequentava uma biboca chamada Pau Brasil Café. Era um lugar tosco, mas bacana. Um sobradinho com um bar embaixo, perto da Duque, avenida que concentrava os bares frequentados por unespianos. No fundo, subia-se por uma escadinha e havia um cômodo no qual as bandas tocavam. Era apertadíssimo, inclusive uns malucos equilibravam-se entre a mureta ao lado do “palco” e uma reentrância na parede da escada. Passava-se debaixo da perna deles para adentrar o recinto. Uma legítima espelunca underground. Em agosto de 97 vi lá pela primeira vez o No Bones, banda local de hardcore. O guitarrista Luiz Fernando tocava com o pé suspenso em cima do pedal. Quando alguém se aproximava muito, levava um chute dele.
“Todos os otários estavam aterrorizados, sabiam que iam pagar/Todo coração jovem na casa aquela noite batia um milhão de batidas/Punhos cerrados e um pouco de medo/Ninguém sabe quem tascou o primeiro soco/Mas depois disso ficou pior”. Coisa de um mês depois o Angry e o Autoboneco tocaram também no Pau Brasil. Na hora do Angry estava tão cheio que não adiantou abrir a janela do lugar: estava tão quente que os vidros permaneceram embaçados e não eram apenas os frequentadores que pingavam de suor: houve condensação no teto e os pingos que de lá caiam tornavam o chão uma armadilha. Foi tenso. No pogo – a famosa roda punk, na qual as pessoas pulam, empurram-se e socam o ar – escorregava-se no chão de ladrilhos. Então chegou a hora do Autoboneco, lenda local até hoje ativa.  Algumas músicas deles depois, aconteceu enquanto eles tocavam sua versão de I Wanna Be Your Dog, do Stooges: alguém esmurrou de verdade outra pessoa. Mais de duas décadas depois, conversando com amigos várias vezes a respeito, ninguém sabe quem começou ou o porquê. As suspeitas apontam para o Boy, skatista e pedreiro, um troglodita que me metia medo e que anos depois eu veria levar um senhor murro na cara de uma amiga, a Marília, ao boliná-la. Mas mesmo detratores dizem que ele não foi o culpado. O fato é que ele se envolveu na briga, que em segundos tomou proporções homéricas. Com tanta gente apinhada, não vi nada direito. Fui separar o Tcharlão, então um jovem anarcopunk, de um sujeito e só depois de um tempão entendi que ele estava é segurando o cara para ele não voltar para a treta. O Autoboneco parou de tocar, seus membros aturdidos, e a pancadaria rumou escada abaixo, um furacão devastando o caminho.
“Nós dissemos tudo o que tínhamos a dizer/Fizemos tudo o que tínhamos que fazer/Não pediremos desculpas por nada/ Não há como interromper uma briga/ Eles tentaram parar o show/Nós não iríamos embora/Pela primeira vez as vozes gritaram juntas por um dia”. O Pau Brasil não tinha seguranças. Ninguém chamou a polícia. Não havia armas. Foi como no filme Warriors. Cada um se garantiu como pôde. Quando desci, a briga se dividia entre focos no bar e na rua. O Nardi, batera do No Bones, correu até a esquina para dichavar alguém. Meu amigo Léo, zineiro, estava com o nariz sangrando; sua namorada de então, a Dri, estava possessa. Segurei-a pela camiseta, mas ela escapou e deu uns tabefes num pobre-diabo. Voltei para dentro do bar e meu amigo Samuel estava sentado, olhando fixamente para uma garrafa. Ele havia levado umas pancadas. Quebrou a garrafa e levantou-se. Temendo o pior, pedi por favor que me desse para jogá-la no lixo. Ele concordou, pegou uma cadeira do bar e bateu no Boy a valer. Dadas as circunstâncias, achei razoável e civilizado. O Boy, que já havia batido, resolveu apanhar resignadamente. Lembro-me como se fosse há cinco minutos ele dizendo “Tá bom, já apanhei bastante”, sem reagir a uma cadeirada nas costas.
“Não se preocupe comigo, mamãe e papai/O que posso fazer além de sair na porrada e rezar?.../Garrafas quebradas, ossos quebrados e lá se foi a noite”. Depois de testemunhar essas pequenas partes da carnificina, levei o Léo ao hospital. Ele havia quebrado o nariz. Até hoje não sabe quem o atingiu e por que justamente ele. Umas garotas foram junto, preocupadas com ele. Constam que não o conheciam, o que acharam engraçado. Deviam ser umas minas gente fina. Fiz uma tradução livre da letra do Down By Law para esta crônica, mas creio ter sido bem fiel. Ela é de 1996, já conhecia e gostava, mas só prestei atenção nela em 2002. Cinco anos depois daquela contenda titânica, fiquei com um nó na garganta: naquela noite minha mãe e meu pai foram visitar a mim e meu irmão de surpresa em Bauru. Eu estava de saída para o Pau-Brasil quando chegaram e disse que ficaria bem – eles ficaram preocupados. Vai ver inclusive foi no feriado de sete de setembro que nos visitaram. E como sobreviver a uma briga num show de punk rock? Mermão, não sou escritor de autoajuda. Nem separar briga, que é o que faço, eu sei direito. Te vira aí.
Daniel Souza Luz é escritor, revisor e jornalista