Hoje, dia da independência, é uma
ocasião especial na minha memória afetiva. Remete a uma noite cuja data exata
ignoro, apenas tenho o registro de que foi em 1997. É que há uma música do Down
By Law, grupo de hardcore dos anos noventa, que narra quase exatamente uma
aventura pela qual passei. Ela se chama Independence Day e a letra fala de uma treta
num show de punk rock, sem mencionar datas, mas deve ter sido num quatro de
julho, a independência dos gringos.
“Bem, os moleques chegam no pico
e a merda bate no ventilador/Muita segurança, mas pouca maturidade/A banda
subiu no palco/Os garotos estavam furiosos”, começa a letra. Há 22 anos eu
cursava Jornalismo no campus da Unesp Bauru e frequentava uma biboca chamada
Pau Brasil Café. Era um lugar tosco, mas bacana. Um sobradinho com um bar
embaixo, perto da Duque, avenida que concentrava os bares frequentados por
unespianos. No fundo, subia-se por uma escadinha e havia um cômodo no qual as
bandas tocavam. Era apertadíssimo, inclusive uns malucos equilibravam-se entre
a mureta ao lado do “palco” e uma reentrância na parede da escada. Passava-se
debaixo da perna deles para adentrar o recinto. Uma legítima espelunca underground.
Em agosto de 97 vi lá pela primeira vez o No Bones, banda local de hardcore. O
guitarrista Luiz Fernando tocava com o pé suspenso em cima do pedal. Quando
alguém se aproximava muito, levava um chute dele.
“Todos os otários estavam
aterrorizados, sabiam que iam pagar/Todo coração jovem na casa aquela noite
batia um milhão de batidas/Punhos cerrados e um pouco de medo/Ninguém sabe quem
tascou o primeiro soco/Mas depois disso ficou pior”. Coisa de um mês depois o
Angry e o Autoboneco tocaram também no Pau Brasil. Na hora do Angry estava tão
cheio que não adiantou abrir a janela do lugar: estava tão quente que os vidros
permaneceram embaçados e não eram apenas os frequentadores que pingavam de
suor: houve condensação no teto e os pingos que de lá caiam tornavam o chão uma
armadilha. Foi tenso. No pogo – a famosa roda punk, na qual as pessoas pulam,
empurram-se e socam o ar – escorregava-se no chão de ladrilhos. Então chegou a hora
do Autoboneco, lenda local até hoje ativa. Algumas músicas deles depois, aconteceu enquanto
eles tocavam sua versão de I Wanna Be Your Dog, do Stooges: alguém esmurrou de
verdade outra pessoa. Mais de duas décadas depois, conversando com amigos
várias vezes a respeito, ninguém sabe quem começou ou o porquê. As suspeitas
apontam para o Boy, skatista e pedreiro, um troglodita que me metia medo e que
anos depois eu veria levar um senhor murro na cara de uma amiga, a Marília, ao
boliná-la. Mas mesmo detratores dizem que ele não foi o culpado. O fato é que
ele se envolveu na briga, que em segundos tomou proporções homéricas. Com tanta
gente apinhada, não vi nada direito. Fui separar o Tcharlão, então um jovem
anarcopunk, de um sujeito e só depois de um tempão entendi que ele estava é segurando
o cara para ele não voltar para a treta. O Autoboneco parou de tocar, seus membros
aturdidos, e a pancadaria rumou escada abaixo, um furacão devastando o caminho.
“Nós dissemos tudo o que tínhamos
a dizer/Fizemos tudo o que tínhamos que fazer/Não pediremos desculpas por nada/
Não há como interromper uma briga/ Eles tentaram parar o show/Nós não iríamos
embora/Pela primeira vez as vozes gritaram juntas por um dia”. O Pau Brasil não
tinha seguranças. Ninguém chamou a polícia. Não havia armas. Foi como no filme Warriors.
Cada um se garantiu como pôde. Quando desci, a briga se dividia entre focos no
bar e na rua. O Nardi, batera do No Bones, correu até a esquina para dichavar
alguém. Meu amigo Léo, zineiro, estava com o nariz sangrando; sua namorada de
então, a Dri, estava possessa. Segurei-a pela camiseta, mas ela escapou e deu
uns tabefes num pobre-diabo. Voltei para dentro do bar e meu amigo Samuel estava
sentado, olhando fixamente para uma garrafa. Ele havia levado umas pancadas. Quebrou
a garrafa e levantou-se. Temendo o pior, pedi por favor que me desse para
jogá-la no lixo. Ele concordou, pegou uma cadeira do bar e bateu no Boy a
valer. Dadas as circunstâncias, achei razoável e civilizado. O Boy, que já
havia batido, resolveu apanhar resignadamente. Lembro-me como se fosse há cinco
minutos ele dizendo “Tá bom, já apanhei bastante”, sem reagir a uma cadeirada
nas costas.
“Não se preocupe comigo, mamãe e
papai/O que posso fazer além de sair na porrada e rezar?.../Garrafas quebradas,
ossos quebrados e lá se foi a noite”. Depois de testemunhar essas pequenas
partes da carnificina, levei o Léo ao hospital. Ele havia quebrado o nariz. Até
hoje não sabe quem o atingiu e por que justamente ele. Umas garotas foram junto,
preocupadas com ele. Constam que não o conheciam, o que acharam engraçado.
Deviam ser umas minas gente fina. Fiz uma tradução livre da letra do Down By
Law para esta crônica, mas creio ter sido bem fiel. Ela é de 1996, já conhecia
e gostava, mas só prestei atenção nela em 2002. Cinco anos depois daquela
contenda titânica, fiquei com um nó na garganta: naquela noite minha mãe e meu
pai foram visitar a mim e meu irmão de surpresa em Bauru. Eu estava de saída
para o Pau-Brasil quando chegaram e disse que ficaria bem – eles ficaram
preocupados. Vai ver inclusive foi no feriado de sete de setembro que nos visitaram.
E como sobreviver a uma briga num show de punk rock? Mermão, não sou escritor
de autoajuda. Nem separar briga, que é o que faço, eu sei direito. Te vira aí.
Daniel Souza Luz é escritor, revisor
e jornalista
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