Nesta semana, no dia primeiro
de dezembro, fez um ano que meu pai faleceu. Não parece, sonho com ele quase
todo dia. São sonhos alegres, ele está sempre bem, geralmente dirigindo ou
querendo dar uma volta, não é nada que me deixe melancólico. Como é
relativamente comum que eu tenha sonhos lúcidos, às vezes me toco da
irrealidade e ele logo se vira para mim e diz que não, não morreu. É como se
ele sempre estivesse presente. Ele está, portanto.
Por obra do destino (este
chavão quase inevitável), dois amigos dele morreram nestes dias. Publiquei
fotos de ambos, acompanhados do meu pai. Primeiro o advogado e escritor Marcos
Mattioli, há exatamente uma semana, no sábado passado. Mattioli, como era
conhecido, gostava da boêmia e, portanto, tinha a saúde frágil. Ou quem o
conheceu melhor pode dizer que, pelo contrário, tinha saúde de touro e que
aguentou o tranco. O fato é que, como disse para minha família, sempre achei
que levaria meu pai, que já não enxergava mais direito, no velório do “Matti”,
outro modo como ele era chamado. Jamais imaginaria o contrário. Como já
evidenciei acima, não o conheci bem, só o encontrava quando meu pai ia na casa
dele ou de algum amigo em comum, troquei poucas palavras com ele. Há alguns
livros dele, autografados, em casa; nunca me interessei, creio que passou da
hora de me interessar. Preciso achar onde meu pai os guardou. Pelo o que me
recordo, são livros de memórias. Suponho que engraçados, o Mattioli parecia ser
um sujeito divertido. O motivo que não conversava com ele é que era muito
conservador, reacionário mesmo, segundo o que meu pai me contava. Eu evitava,
para não haver conflitos. Claro que me arrependo um pouco, nunca contei para
ele que um dos meus quadrinistas favoritos é o italiano Massimo Mattioli, por
exemplo. Já meu pai era íntimo dele a ponto de imitar o jeito como ele falava
na cara dele, tirando um sarro; minha irmã ri demais quando se lembra disso.
Um dia depois que o
falecimento do meu pai completou um ano, outro grande amigo dele se foi: Manoel
Renda Salcidos Filho, o Mané Renda. Ele eu conheci melhor, visitava meu pai em
casa e frequentava seu escritório, além de ser filiado ao mesmo partido, o
PMDB, hoje apenas MDB. Viajaram juntos muitas vezes, tanto para o exterior,
quanto para vários locais do Brasil. De uma viagem jamais me esquecerei, pois
também estava presente: a primeira vez que fui ao Rio, em fevereiro de 2012, encontramos
com o Mané; ele já estava lá. Ele levou a mim e a minha mãe – não me lembro
agora se meu pai foi também – para um tour pela cidade no carro dele. Não
conhecemos só lugares óbvios para turistas, como São Conrado e o Botafogo: foi
um rolê aventureiro, no qual fomos para o Vidigal e demos um grande passeio na
favela da Rocinha, que tinha uma quantidade absurda de PMs com escopetas e
armas desse naipe, além de ter a melhor vista da cidade, fora o Pão de Açúcar.
Sem guia, sem nada, só metendo as caras (claro que o Mané já conhecia bem o
Rio, estava acostumado a dirigir lá). Foi maneiro demais, fiquei fascinado pela
cidade e achava que jamais gostaria de lá.
Fui puxando o fio da memória e
falei foi dos amigos do meu pai e não dele. Aliás, tem muito “meu pai” nesta
crônica e tem que ter mesmo. Lembro que no ano passado, ao fazer um texto sobre
a passagem dele, usei o sinônimo papai, mas não tenho este hábito. O que me
recorda um artigo recente do Mario Sérgio Conti no qual ele menciona que os
gringos não têm essa preocupação de ficar procurando sinônimos para que
palavras e expressões não se repitam ao longo do texto; estão certos eles.
Aproveito o ensejo para mandar um antigo chefe meu numa assessoria de imprensa
ir se lascar, pois ele deu um chilique no telefone quando usei muito o termo
“biblioteca” num release sobre... bibliotecas. Ora, que grande imbecil ele era.
Eu era jovem demais para reagir à descompostura, hoje eu falaria grosso na hora.
Bem, vingança tardia à parte, meu pai gostava disso, de um assunto ir puxando o
outro. Nesta semana publiquei em todas as redes sociais possíveis uma foto dele
e no fundo havia um quadro que um amigo dele, Hiroshi Murakami, pintou a partir
de uma foto minha de quando eu era bebê, ainda nos anos 1970. Disse que ele
havia falecido naquela década, mas guardei errado a informação que meu pai me
passou: o Murakami feneceu (deste sinônimo eu gosto) nos anos 1990,
esclareceu-me num comentário na foto meu amigo Clisthenis Betti, ator bem
conhecido, e que precisa ser mais reconhecido, na cidade. O Clisthenis conheceu
bem os filhos do Murakami, foram criados juntos. Ele, inclusive, gravou e me
mandou um vídeo com a caixa com os pincéis e materiais de pintura dele, dada de
presente para o irmão dele por uma das duas filhas do Murakami, que
infelizmente não conheci. No acanhado apartamento onde passei a infância tinha
um quadro dele mais autoral, na verdade um esboço que meu pai enquadrou. Um dos
motivos do qual tanto gosto dele é que estava inacabado. Está guardado em algum
lugar. Há fotos do meu pai e da minha família em que este quadro aparece,
guardadas em álbuns. São essas as memórias que acalento. As crônicas no sentido
norte-americano, das histórias dos poderosos da cidade, não me interessam. Acho
que só interessam a quem gosta mais de preservar estátuas do que pessoas. É,
pouco falei mesmo do meu pai. Só que Daniel da Luz era generoso. Tenho certeza
de que ele gostaria de compartilhar essas histórias dos amigos dele, todos
companheiros agora no bardo, no céu, na farra, em alguma viagem por aí, vocês
que sabem.
Daniel Souza Luz é professor, escritor, jornalista e revisor
Esta crônica deveria ter saído hoje no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG), mas estava muito extensa. Em seu lugar saiu um miniconto. O título provisório era Um Ano Sem Meu Pai, mas minha namorada, Juliana Gandra, sugeriu o título Pictures of You, citando a música do The Cure. Eu optei por traduzi-lo. Ela também revisou o texto.
Foto que tirei do meu pai no dia 30 de agosto de 2006, no escritório dele. |
Meu pai (Daniel da Luz), a enfermeira Maria José, Sebastião Pinheiro Chagas, Sérgio Alvisi e Marcos Mattioli. Foto que tirei no aniversário de Norberto Danza, 02/05/2017. |
5 comments:
Daniel. Que crônica linda. Tens toda razão, histórias de pessoas como seu pai (Ou ele em seus amigos) e pessoas reais são bem mais interessantes que crônicas burguesas.
Lindas lembranças e muitas histórias desses dois , só uma correção o Manoel tbm foi no dia 1. Exatamente no mesmo dia que seu pai. Durante a semana ainda estávamos lembrando do Daniel perdido em Veneza e outras lembranças. Manoel amava seu pai é foi uma das partidas que ele mais sentiu. Estávamos em Funchal e acendemos uma vela pra ele lá. O resto da viagem foi só lembranças das " artes " que eles faziam nas travessias que eles tanto amavam . Assim que eu estiver em condições vou te mandar fotos que tenho certeza que vc gostará de ver !!!!
Muito obrigado pelo esclarecimento e por compartilhar essas memórias, Ednir! O Reginaldo Franchi me disse mesmo que o Mané tinha ido exatamente um ano depois, mas me baseei por uma publicação da OAB, que tinha dito que foi no dia dois (a mesma data que recebi a notícia). Depois faço essa observação abaixo de texto. Estou pensando em condensá-lo para publicar no jornal, daí já ponho a data correta também. Mais uma vez, obrigado!
Esse texto está maravilhoso, me envolvi nele aponto de rir e chorar junto com a narrativa. Cheguei de uma forma aleatória aqui e foi muito bom, fazia tempo que não me identificava tanto com uma escrita, parabéns.
Muito obrigado a todos pela leitura e os comentários, fico muito feliz que tenha emocionado vocês!
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