Uma chamada em grupo. De
surpresa. Dos trinta selecionados, vinte e dois atendem.
- Oi, geeenteeeemmmm! Vocês devem
estar se perguntando por que os reuni aqui. É que quero um resgate de um milhão
de dólares de cada um vocês. Sequestrei a dignidade de todos.
Alguns riem. A maioria está meio
atônita. Então a responsável pela chamada explode em gargalhadas.
- Brincadeirinha! Hoje é meu
aniversário. Me deem parabéns!
Aí o gelo racha e quase todos
racham o bico. Chovem parabéns, parabéns, parabéns.
- Sequestrou minha dignidade
mesmo, já estou de pijama.
- Ai, amiga, desculpa. Foi por
uma boa causa. Todo mundo que tem algo para beber pega aí. Vão me falar que
vocês não têm estoque, mesmo com lei seca?
Uma pessoa sai da chamada. Supõe-se
que ela deu as felicitações pedidas. Era difícil discernir quem disse algo ou
não.
- E quem quiser sair da chamada,
tudo bem. Só queria parabéns. Mas quem puder, vamos beber juntos.
Mais ninguém sai. Alguns já
estavam bebendo. É sexta à noite. Outros levantam-se, vão buscar bebidas,
voltam. Mas fica um silêncio. Muitos não se conhecem entre si.
- Fala alguma coisa alguém.
- Alguma coisa.
- Engraçadinho.
- Se não fosse essa maldita
pandemia poderíamos estar comemorando pessoalmente.
- Não tem nada a ver. É só fazer
o tratamento precoce. Podemos nos encontrar agora mesmo.
- Mas você fez?
- Não.
- Não acredito que tem um
fascista aqui.
- Olha o respeito.
- Vai falar que também acredita em cloroquina, ivermerctina
e outras fake news de gado?
- Gado é você, sua vaca.
- Além de fascista, é machista.
- Sai daqui, fascista.
Vaias. A aniversariante está atônita.
- Não saio, fui convidado.
- Não acredito que você tem um amigo fascista e convidou ele
pra festa.
- Gente, calma. Eu não sabia.
- Você tá me chamando de fascista? Pensei que fôssemos
amigos.
Algumas pessoas saem da chamada. Restam quinze presentes.
- Não é isso. Eu não acho que você seja, eu só não sabia que
você defendia essas burrices.
- Agora que não saio daqui.
- Encerra a chamada e faz outra sem ele.
Silêncio.
- Meu celular travou, gente.
- Eu não saio. Agora embirrei. É a minha opinião. Vocês não
aceitam opinião?
- É tudo remédio que não funciona, ivermerctina em excesso
está resultando em falência renal, as pessoas estão precisando de transplante
porque tem idiotas que divulgam isso. Tipo você.
- Você não sabe de nada.
- Ora, então é você que não aceita opinião. Aliás, não é
opinião, é fato.
Mais sete pessoas saem da chamada. Restam oito. Sorte delas.
Elas podem ver uma cena inesquecível.
- Vem aqui, Chanim. Mostra pra essas feias os gatos que
somos.
Dito isso, o gato arranhou o rosto do dono ao ser pego. Gargalhadas.
Humilhado, o prepotente convidado sai da chamada.
- Essa foi a melhor festa para a qual já fui convidada.
Obrigada!
Este é um texto de ficção. Mas hoje à noite pode não ser,
quem sabe?
*Este conto é dedicado à Juliana Gandra, minha namorada,
que faz aniversário hoje. Te amo, Juju.
Daniel Souza Luz é jornalista, escritor, revisor e
professor.
Este conto saiu no Jornal da
Cidade, de Poços de Caldas/MG, em 02/04/2021, dia de aniversário de 25 anos da Ju, que
revisou o texto. Também fiz uma leve revisão extra agora, só consertei uma
palavra (no original, saiu “geeeteeeemmmm”). Alterei o título também, o original
era “Aniversário Pandêmico”, mas com quase quatrocentos mil assassinados pela necropolítica
do governo neofascista da genocida familícia Bolsonaro (esse emprego de vários
adjetivos não é nada exagerado, pelo contrário), creio que é um título impensado,
pouco empático.
Selfie da Ju, 21 de março de 2021. |
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