Monday, December 20, 2021

Veja a Manchete

Raramente tenho algo que se possa chamar de pesadelo, de uma década e meia para cá. E mesmo antes não era algo muito comum. No entanto, há uns anos, apesar de não ter acordado assustado, fiquei aliviado ao acordar de um sonho que não foi particularmente bom. Então talvez tenha sido mesmo um pesadelo. Nele, estava folheando uma Veja de 1979; havia denúncias de tortura, era uma edição comemorando a Anistia, a reabertura política que levou ao fim da ditadura no Brasil. Enfim, havia uma matéria, páginas adiante, falando de tortura e execuções de opositores na Turquia. Parecia muito real, vi vários cadáveres desfigurados. Até a diagramação e a fonte das letras pareciam com as das revistas que lia quando era criancinha, em salas de espera e, em especial, em barbearias no centro de Poços, quando eu ia cortar o cabelo com meu pai e tinha que aguardar minha vez. Na vida real, essas revistas realmente eram assim, mas a Manchete, principalmente, mais parecia encarte de discos do Carcass, a pioneira banda de goregrind. Lembro-me em especial de uma, numa barbearia que ainda existe, quando havia acabado de aprender a ler: publicaram uma reportagem sobre um sequestro de avião em que os terroristas cortaram aleatoriamente a língua de uma refém. Havia várias fotos dela sangrando ao longo das páginas. Talvez só uma ou duas, mas na minha memória agora parece que eram dezenas. Em preto e branco, o que tornou aquele sangue escurecido ainda mais traumático. Ficava pensando em como ela poderia viver depois; isso perturbou vários dias da minha infância. Perto disso, o famoso jornal Notícias Populares, apelidado de “Espreme e Sai Sangue”, hoje tão morto e enterrado quanto a Manchete, não era nada.

 

Daniel Souza Luz é professor, escritor, jornalista e revisor

Esta crônica foi publicada no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 18 de dezembro de 2021. É uma versão reescrita e ampliada da minha Micrônica 2147, de 25 de março de 2018.


Uma edição de janeiro de 1985 da revista Manchete. Reproduzida aqui via licença Creative Commons.




Monday, December 13, 2021

Procurando chifre em cabeça de cavalo

 Escrevi este conto em 2008. Resolvi tirá-lo da gaveta e foi publicado no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 11 de dezembro de 2021. Como o texto já tinha 13 anos, precisei reescrevê-lo para atualizar referências tecnológicas. De qualquer forma, o reescreveria mesmo em parte, pois eliminei elementos do texto original que denotavam forte influência do Bukowski, o que me irrita profundamente hoje. Mas não se enganem, ainda sou fã do Buk. 

A única música que me dava arrepios era The Carnival Is Over, mas hoje em dia não sinto quase nada. O prazer de ouvir a música é muito vago. Mas ao menos isso. Nenhum outro som me desperta algo. Ou despertava. O que tornou especialmente difícil escutar, de bobeira, Feel Good The Hit Of The Summer, que não diz nada com nada, e voltar a associar uma música a uma pessoa. A lembrança de Anna desabou sobre mim com o peso de uma banda que eu não ouvia há muito tempo e da qual nós tanto gostávamos. Só havia algo no mundo que eu gostava mais do que aquele CDzinho azul do Rated R: da Anna. Eu o perdi, a perdi. Se foi o interesse por ambos, mas não consegui bloquear a lembrança dela. Apenas a tirei de foco.

Chorei e não sou disso. Não chorava desde que tinha uns onze anos. Sempre detestei, fui ensinado a crer que era coisa de maricas. Foi foda, o impacto sonoro suspendeu o entrave mnemônico que havia me imposto. Malditos algoritmos do modo aleatório dos serviços de streaming. Encomendei uma edição especial do CD, já que o passado voltou tão veementemente. Bobagem, podia ter escutado online mesmo. Na minha mente, as faixas já se reordenaram e estão tocando na ordem certa. Já tinha tudo de cor, internalizado. Bem, não senti nada, de novo, quando tirei o CD do invólucro e pus para rodar. Se fosse só isso estava bom. Mas não. As recordações daquele tempo com Anna, de qualquer forma, me deixaram abalado em outros momentos nada musicais. Não sabia mais nada sobre ela, a não ser que tinha se mudado da casa dos pais.

Pois bem, resolvi procurar por ela nas redes sociais. Nada. Mas uma busca na web me revela o número e endereço do consultório dela. Agora ela trabalha com constelação familiar. Caramba, que picaretagem. Mas é tarde, estou obcecado.

Avalio por uma meia hora, andando de um lado para o outro e tomando café, se devo ligar ou aparecer na porta do consultório dela como se eu não quisesse nada. No fim, resolvi ligar. Ela atende, não consigo falar. Nunca fui dessas coisas, que idiota. Sou mais cretino ainda ao ligar novamente e pôr o telefone em frente ao som, sem falar nada, enquanto o Rated R está rolando no volume máximo. Depois de uns trinta segundos abaixo o som e resolvo falar um oi, mas ela já havia desligado. Será que ela entendeu o que estava acontecendo? Espero meia hora para ver se ela retorna a ligação. Largo mão de frescura: agora ligo direto pra ela, que atende com frieza. Ela tinha sacado sim que era eu. Avisa que ainda escuta muito o disco, pois o marido comprou a reedição em vinil de 180 gramas. Ah tá, entendi o recado. Depois de algum papo protocolar, tchau. Sheila está me esperando em casa, impaciente e ligando no meu celular a cada cinco minutos.

Daniel Souza Luz é professor, escritor, revisor e jornalista


A reedição em vinil do Rated R, disco do Queens of Stone Age lançado originalmente com a capa azul em 2000.


Monday, December 06, 2021

Queda Livre

Esta crônica foi publicada no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 04/12/2021, depois de ser revisada pela minha noiva, Juliana Gandra. É uma versão reescrita e muito ampliada da minha crônica A Queda, de 2017. 

Há algum tempo disse que precisa reescrever minha crônica A Queda. Bem, chegou a hora, por uma série de fatores que não vêm ao caso agora. A questão é: talvez eu tenha começado a andar de skate em 1987, mas mais provavelmente apenas meu irmão começou naquele ano. Eu tinha medo; via uns moleques bem mais velhos, uns caras que na verdade eram altos que nem prédios e já deviam ter 18 anos, ou quase isso, descendo minha rua muito rápido em pé nos skates; eu pensava que no máximo desceria sentado. Parecia assustador demais, absolutamente apavorante, vê-los soltos em cima das pranchinhas com rodas. Bem, um ano depois lá estava eu descendo a rua de casa em cima de um skate, primeiro com medo, pouco depois destemidamente. Eu me recordo bem que tinha 13 anos quando comecei, pois os moleques mais novos diziam que eu era velho demais para começar a andar – imagina, pura pressão, não tinha o menor sentido. Apesar de ter alcançado esta idade nos fins de 87, é quase certeza que comecei a andar em 1988.

Tanto eu quanto meu irmão começamos com um péssimo skate, emprestado por um amigo chamado Ronan, primo de umas vizinhas. Ele sempre aparecia na rua Platina, onde residíamos, e nos emprestava o skate dele sem problemas. Meu irmão e eu convencemos meu pai a nos comprar skates bem melhores. Eles nos proporcionaram algo muito melhor do que descer rápido a rua, afinal isso os carrinhos de rolimã também proporcionavam. Aprender a dar ollie, o famoso flatland ollie inventado por Rodney Mullen, foi árduo, mas era isso que nos fazia voar. Não conheço sensação melhor na adolescência do que sair por aí superando obstáculos de ollie air.

Mais do que qualquer coisa, acho que foi isso que me deixou safo para a vida de adolescente e a ter alguma vivência de rua. Até então, eu era meio cabação das ideias. Era bem impressionável e um exemplo de pensamento mágico, sem qualquer fundamento na realidade, do qual nunca me esqueço é de quando, salvo engano, eu ainda não sabia andar de skate.

Meu irmão foi pular uma rampinha improvisada da rua Platina, que é uma leve ladeira, mas se atrapalhou e bateu a cabeça no chão. Fiquei impressionado com o baque seco da queda, pois eu estava ouvindo música bem alto no toca-fitas do carro do meu pai, pois era o único aparelho de som que tínhamos.

Acontece é que justo naquele momento eu estava ouvindo Bark At The Moon, do Ozzy Osbourne. Como eu não sabia quase nada de inglês e não anotaram o nome das músicas na fita, eu achava que o Ozzy dizia “Back, Demon!” no refrão – que, na minha cabeça, era “Volta pra cá, Demônio!”. Não fazia ideia que a tradução do título era Uivando Para a Lua. Pois bem, influenciado por discursos sensacionalistas da mídia, achei que meu irmão havia caído por minha culpa, devido à suposta influência malévola da música. Quando entramos em casa e ele era socorrido, eu me senti extremamente culpado. Mas ele se recuperou e tudo realmente acabou bem: aprendi inglês e dois anos depois já estávamos ouvindo Slayer, que é thrash metal e muito mais satânico do que o Ozzy, mas esses satanismos de araque do metal só impressionam quem é bocó.

Daniel Souza Luz é professor, revisor, escritor e jornalista


Still do videoclipe de Scrape, música de 1995 de Unsane, editado apenas com tombos de skate. O Unsane é um das bandas de noise rock da qual mais gosto. O nome desta crônica era originalmente Caindo de Novo, mas mudei para Queda Livre, pois assim que a concluí começou a tocar Free Fall, do Cornelius, artista japonês de música eletrônica, num aplicativo. Daí aproveitei a sincronicicidade. 



Wednesday, December 01, 2021

Todas as saudades

Esta crônica, em homenagem ao meu pai, saiu hoje nos jornais Mantiqueira e Jornal da Cidade, ambos de Poços de Caldas. Aqui está a versão definitiva, pois fiz algumas alterações: corrigi tempos verbais, acrescentei algumas palavras e cortei outras. Foram pequenas modificações em algumas frases para que ficassem mais compreensíveis ou deixassem de ser ambíguas. O texto não havia passado por revisão antes da publicações nos jornais, portanto o reli e revisei-o antes de publicá-lo aqui. 

Todas as saudades

Aos domingos, às sete da manhã ou até antes, um senhor, em idade muito provecta, às vezes tocava a campainha do apartamentozinho onde minha família morou durante minha infância e adolescência, nos acordando. Era um velhinho chinês, franzino, conhecido como seu Charles. No começo estranhamos, mas ele era tão simpático, com um sorriso tão largo, que ninguém se importava com as visitas inusitadas. De qualquer forma, eu e meus irmãos éramos crianças, não íamos dormir tardão no sábado à noite. Ele jamais aceitou um convite para entrar, conversava muito brevemente e sempre trazia presentes. Geralmente comida, principalmente arroz agridoce que ele mesmo preparava, salvo engano. Nunca havia comido algo assim; a princípio até que gostei, mas depois não conseguíamos comer; era muito atípico para nosso paladar infantil. Mesmo assim, recebíamos o presente de bom grado.

Por que ele gostava de nos presentear? Meu pai disse que uma vez o viu chorando na rua, pois o seu Charles não tinha mais dinheiro para comprar comida. Então meu pai lhe fez uma compra de supermercado e disse que ele não precisava pagar até ter condições financeiras novamente. Segundo meu pai, seu Charles não só o pagou posteriormente, como também fazia questão de demonstrar o quão agradecido era.

Hoje faz dois anos que Daniel da Luz morreu. Meu pai. Nunca me achei parecido com ele no jeito de ser. Fisicamente, somos parecidos, claro. Aliás, muito parecidos. Mas há outras características que foram herdadas e das quais não me dava conta. Vira e mexe ganho presentes de amigos a quem socorri financeiramente no passado. Só notei isso agora. Também não pedia para me pagarem imediatamente, não cobrava juros, nada disso. Fui movido pelo exemplo do meu pai, inconscientemente.

Convivi demais com meu pai nos últimos anos de vida dele, conversava o máximo possível sobre o passado, mas, mesmo assim, ficam lacunas. Não sei de onde ele conheceu o seu Charles, por exemplo. E ele adorava contar histórias, verdadeiras ou não. Era um pouco difícil discernir o que era verdade e o que era ficção. Tal como a vida.

Tirei centenas de fotos do meu pai, ainda assim parece que é pouco. Então recorro novamente a velhos álbuns, dos tempos analógicos, com novo olhar. Há fotos, a quais eu não dava atenção, nas quais amigos dele aparecem. Graças a minha mãe, hoje sei quem são alguns, tais como Mário Xandó de Oliveira, o avô do jogador de vôlei, e Joffre Rafael dos Santos, ex-vereador, de inesquecível voz rouquenha, com quem eu conversei dezenas de vezes ao telefone, pois ele ligava insistentemente para meu pai, mas com quem nunca me encontrei – não que me recorde. Não há fotos do seu Charles. Ele desapareceu ainda nos anos oitenta. Consta que simplesmente sumiu e a família nunca mais teve notícias dele. Mas hoje todas essas presenças evolaram. Tenho saudades dessas pessoas que sequer conheci de verdade, de toda uma sociedade que subsiste apenas na memória. Que dirá então do meu pai.

Daniel Souza Luz é professor, jornalista, escritor e revisor

Daniel da Luz (01/01/1941 - 01/12/2019). Tirei esta foto em 30/08/2006.