Raramente tenho algo que se
possa chamar de pesadelo, de uma década e meia para cá. E mesmo antes não era
algo muito comum. No entanto, há uns anos, apesar de não ter acordado
assustado, fiquei aliviado ao acordar de um sonho que não foi particularmente
bom. Então talvez tenha sido mesmo um pesadelo. Nele, estava folheando uma Veja
de 1979; havia denúncias de tortura, era uma edição comemorando a Anistia, a
reabertura política que levou ao fim da ditadura no Brasil. Enfim, havia uma
matéria, páginas adiante, falando de tortura e execuções de opositores na Turquia.
Parecia muito real, vi vários cadáveres desfigurados. Até a diagramação e a
fonte das letras pareciam com as das revistas que lia quando era criancinha, em
salas de espera e, em especial, em barbearias no centro de Poços, quando eu ia
cortar o cabelo com meu pai e tinha que aguardar minha vez. Na vida real, essas
revistas realmente eram assim, mas a Manchete, principalmente, mais parecia encarte
de discos do Carcass, a pioneira banda de goregrind. Lembro-me em especial de
uma, numa barbearia que ainda existe, quando havia acabado de aprender a ler: publicaram
uma reportagem sobre um sequestro de avião em que os terroristas cortaram
aleatoriamente a língua de uma refém. Havia várias fotos dela sangrando ao
longo das páginas. Talvez só uma ou duas, mas na minha memória agora parece que
eram dezenas. Em preto e branco, o que tornou aquele sangue escurecido ainda
mais traumático. Ficava pensando em como ela poderia viver depois; isso
perturbou vários dias da minha infância. Perto disso, o famoso jornal Notícias
Populares, apelidado de “Espreme e Sai Sangue”, hoje tão morto e enterrado
quanto a Manchete, não era nada.
Daniel Souza Luz é professor, escritor, jornalista e revisor
Esta crônica foi publicada no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 18 de dezembro de 2021. É uma versão reescrita e ampliada da minha Micrônica 2147, de 25 de março de 2018.
Uma edição de janeiro de 1985 da revista Manchete. Reproduzida aqui via licença Creative Commons. |