Esta crônica, em homenagem ao meu pai, saiu hoje nos jornais Mantiqueira e Jornal da Cidade, ambos de Poços de Caldas. Aqui está a versão definitiva, pois fiz algumas alterações: corrigi tempos verbais, acrescentei algumas palavras e cortei outras. Foram pequenas modificações em algumas frases para que ficassem mais compreensíveis ou deixassem de ser ambíguas. O texto não havia passado por revisão antes da publicações nos jornais, portanto o reli e revisei-o antes de publicá-lo aqui.
Todas as saudades
Aos domingos, às sete da manhã ou
até antes, um senhor, em idade muito provecta, às vezes tocava a campainha do
apartamentozinho onde minha família morou durante minha infância e adolescência,
nos acordando. Era um velhinho chinês, franzino, conhecido como seu Charles. No
começo estranhamos, mas ele era tão simpático, com um sorriso tão largo, que ninguém
se importava com as visitas inusitadas. De qualquer forma, eu e meus irmãos
éramos crianças, não íamos dormir tardão no sábado à noite. Ele jamais aceitou
um convite para entrar, conversava muito brevemente e sempre trazia presentes.
Geralmente comida, principalmente arroz agridoce que ele mesmo preparava, salvo
engano. Nunca havia comido algo assim; a princípio até que gostei, mas depois
não conseguíamos comer; era muito atípico para nosso paladar infantil. Mesmo
assim, recebíamos o presente de bom grado.
Por que ele gostava de nos
presentear? Meu pai disse que uma vez o viu chorando na rua, pois o seu Charles
não tinha mais dinheiro para comprar comida. Então meu pai lhe fez uma compra
de supermercado e disse que ele não precisava pagar até ter condições
financeiras novamente. Segundo meu pai, seu Charles não só o pagou
posteriormente, como também fazia questão de demonstrar o quão agradecido era.
Hoje faz dois anos que Daniel da
Luz morreu. Meu pai. Nunca me achei parecido com ele no jeito de ser. Fisicamente,
somos parecidos, claro. Aliás, muito parecidos. Mas há outras características
que foram herdadas e das quais não me dava conta. Vira e mexe ganho presentes
de amigos a quem socorri financeiramente no passado. Só notei isso agora. Também
não pedia para me pagarem imediatamente, não cobrava juros, nada disso. Fui
movido pelo exemplo do meu pai, inconscientemente.
Convivi demais com meu pai nos
últimos anos de vida dele, conversava o máximo possível sobre o passado, mas,
mesmo assim, ficam lacunas. Não sei de onde ele conheceu o seu Charles, por
exemplo. E ele adorava contar histórias, verdadeiras ou não. Era um pouco
difícil discernir o que era verdade e o que era ficção. Tal como a vida.
Tirei centenas de fotos do meu
pai, ainda assim parece que é pouco. Então recorro novamente a velhos álbuns,
dos tempos analógicos, com novo olhar. Há fotos, a quais eu não dava atenção, nas
quais amigos dele aparecem. Graças a minha mãe, hoje sei quem são alguns, tais
como Mário Xandó de Oliveira, o avô do jogador de vôlei, e Joffre Rafael dos
Santos, ex-vereador, de inesquecível voz rouquenha, com quem eu conversei
dezenas de vezes ao telefone, pois ele ligava insistentemente para meu pai, mas
com quem nunca me encontrei – não que me recorde. Não há fotos do seu Charles.
Ele desapareceu ainda nos anos oitenta. Consta que simplesmente sumiu e a
família nunca mais teve notícias dele. Mas hoje todas essas presenças evolaram.
Tenho saudades dessas pessoas que sequer conheci de verdade, de toda uma
sociedade que subsiste apenas na memória. Que dirá então do meu pai.
Daniel Souza Luz é professor,
jornalista, escritor e revisor
Daniel da Luz (01/01/1941 - 01/12/2019). Tirei esta foto em 30/08/2006. |
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