Esta crônica (ou memórias, talvez) foi publicada na página 8 da edição 7811 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 06/08/2022. Apesar do título, ressalto que Ziraldo não parecia estar nem um pouco incomodado, é bom deixar isso claro. Com certeza, ele estava acostumado com entrevistas amalucadas desde os tempos do Pasquim.
Em 2001, formado há pouco
tempo em Jornalismo e de volta a Poços de Caldas, eu tentei fazer um site com
um amigo, o Elídio Júnior. Como muitos projetos em que embarquei, não foi muito
pra frente. Ele nomeou o site de Bixo Grilo, fez um logotipo muito bom, mas o
nome não me aprazia, nada tinha a ver comigo. O site chegou a funcionar, de
qualquer forma, e encasquetei de entrevistar o Ziraldo, que viera fazer uma
palestra (ou ministrar uma oficina, agora a memória me trai) na Casa da
Cultura. No final do evento, eu e um jornalista local pedimos para entrevistá-lo.
Recordo-me bem que o coleguinha cobria a pauta dele com a mão, parecendo
incomodado com minha presença. Ora, como se eu fosse fazer as mesmas perguntas simplórias
e publicá-las para ele ver. Talvez ele tenha agido assim porque eu não tinha
pauta em mãos – não precisava. Batismo de fogo interiorano feito, abordei
Ziraldo e disse que queria fazer uma entrevista mais longa, pois era para um
site, portanto sem limitações de espaço. Ele me disse que iria fazer uma
espécie de terapia alternativa com uma senhora que o aguardava, então uma moça
que a acompanhava (filha dela, salvo engano) sugeriu que eu fizesse a
entrevista a caminho da casa delas. Não fizemos objeções e a entrevista foi gravada
no trajeto, com direito a uma parada no Mercado Municipal para Ziraldo comprar
queijos. Eu me lembro que era uma senhora muito gentil essa terapeuta mística e
que ela tinha um nome muito incomum: Santa Abelha. Finalizei a entrevista já na
casa dela, na Cascatinha, e ela e a filha pareciam estar gostando de acompanhar
o bate-papo literário. Infelizmente, perdi a gravação. Eu a transcrevi para o
site, é claro, mas está em algum disquete sabe-se lá onde. Talvez já tenha
desmagnetizado. E onde eu abriria um disquete? O site está fora do ar há vinte
anos. No entanto, recordo-me bem de passagens marcantes da conversa. Quando
falamos sobre seus livros Flicts e O Menino Maluquinho, Ziraldo citou o Dr.
Seuss – se não como influência, ao menos como um autor que o marcou. Quando a
conversa enveredou pela literatura contemporânea, eu disse que gostava muito do
Bukowski. Ziraldo retorquiu que não era muito fã dele e dos beats, mas que uma
vez foi na City Lights, a livraria do poeta Lawrence Ferlinghetti, que tinha
(tem) caráter comunitário beatnik e que gostou muito de lá. E me fez uma
recomendação maravilhosa: se eu era “taradão” (lembro bem dele usar esse termo)
no Bukowski, que procurasse um conto chamado Viagem aos Seios de Duília, do
Aníbal Machado. “É uma perfeição, sem furos”, disse-me Ziraldo. E é exatamente
isso, é um dos melhores contos que li, ao lado de A Causa Secreta, do Machado
de Assis, e de algumas obras-primas do Buk e dos autores de ficção científica
Phillip K. Dick e Brian Aldiss. Outra passagem da conversa talvez tenha sido em
off, mas é muito saborosa para eu não a relatar; além disso, prezo o registro
histórico, então aí vai a suposta inconfidência: comentei que gostava de ler a
coluna do João Ubaldo Ribeiro no Estadão e Ziraldo ficou indignado. Disse que o
autor baiano era um “nojento”, que não suportava a empáfia dele e que ele
bancava o rebelde, mas topou entrar para a Academia Brasileira de Letras, o que
configurava uma hipocrisia. Escritores não têm que ser santos ou agradáveis
para ser admirados, mas, de fato, anos depois vi aqui uma palestra de Ubaldo na
qual ele parecia ser muito bonachão, mas deu uma resposta tão atravessada (ainda
que correta) a uma pergunta ingênua que ele me pareceu ser de uma arrogância
ímpar – daí me lembrei do que Ziraldo me disse. Há uns cinco anos, Ziraldo fez
uma fala homofóbica numa palestra também aqui em Poços. Foi algo tipo “Fernanda
Montenegro não está autorizada a divulgar lesbianismo na novela”. Justo ele,
que desenhou o logo do PSOL, partido conhecido por abraçar a causa LGBTQIA+,
deu uma dessas. Porém, o episódio trouxe-me à memória uma frase que ele me
disse e que achei engraçada: “Uma vez disse ao Paulo Francis que escrever bem
não o autorizava a escrever um romance”. O que é verdade, tentei ler livros de
Francis e são intragáveis; embora ele escrevesse muito bem, o forte dele era
ser polemista de esquerda e, depois, de direita. Em outubro Ziraldo fará 80
anos. Falando asneiras ou grandes verdades, espero que ele ainda fale muito. E,
quem sabe, que algum dia eu recupere a íntegra dessa entrevista.
Daniel Souza Luz é jornalista, professor,
revisor e escritor
Um jovem Ziraldo numa foto em que ele está bastante parecido com o Jaz Coleman, o vocalista do Killing Joke. A fotografia é de domínio público. |
4 comments:
Qie delícia de texto. Deve ter sido ainda mais delícia fazer esta entrevista, assim como foi.
Foi muito bacana! Obrigado pela leitura!
Que delíciaaaaa!! Ai de mim por não ter sido a abelhinha número dois a presenciar esta entrevista...uiuiui..😍
Muito obrigado pela leitura!
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