Esta crônica foi publicada na página 7 da edição 7826 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 27 de agosto de 2022.
Semana passada escrevi a
respeito da memória afetiva acrescida à leitura do Auto da Compadecida, de
Ariano Suassuna, pois li-o em voz alta para meu pai, que tinha dificuldade em
enxergar no final da vida. Foi mais do que justo, afinal ele lia gibis do
Gasparzinho, do Recruta Zero, do Brasinha, da Turma da Mônica e de alguns
personagens da Disney para mim e meu irmão quando éramos criancinhas – os de
super-heróis vieram quando já estávamos alfabetizados. O fato dele deixar para
ler algumas histórias no dia seguinte fez com que nos apressássemos a aprender
a ler, pois queríamos saber como acabavam todas as histórias de uma vez. Ele
também lia algumas histórias do Pasquim para nós; as que davam para uma criança
entender, claro. Graças a isso, tornamo-nos leitores de fato. E era um grande
prazer ler ou reler livros para ele, o clássico do Suassuna não foi o único.
Queria ter lido mais obras ainda; comprei livros do Neil Gaiman, da J.K.
Rowling, do Yuval Noah Harari e de outros autores apenas e tão somente para fazer
a leitura para ele, mas não deu tempo. Até daria, mas às vezes ele pedia para
eu parar um pouco para darmos rolê (afinal a literatura é sobre a vida e a vida
também é andar por aí à toa), outras vezes preferi deixá-lo de boa assistindo
novelas globais, as quais odeio, mas que já era um hábito de anos e uma
predileção que eu não tinha o direito de cancelar. Portanto, em outros
horários, consegui reler, desta vez em alto e bom som, pequenas obras do Jorge
Amado, do Marcos Bagno, da Cecília Meireles e vários outros autores para ele. Só
houve um livro extenso que li de ponta a ponta, e esse comprei de presente para
ele, não foi uma releitura: Sócrates e Casagrande, uma História de Amor,
biografia escrita pelo jornalista Gilvan Ribeiro em colaboração com o próprio
Casão. Foi uma leitura melhor do que esperava, pois o livro fala muito de arte
e política, além de futebol, devido à intensa vida que ambos levaram. E aborda,
claro, o mítico período da Democracia Corinthiana e a militância de ambos
contra a ditadura militar. Tem até uma cabulosa história da repressão que
desconhecia: um dos irmãos de Zico, o também jogador de futebol Nando Antunes,
foi torturado por seu trabalho como educador e teve a carreira de boleiro
profissional prejudicada. Infelizmente, enquanto livro-reportagem, a obra
carece de uma melhor edição de texto: é repetitivo a ponto de ser enfadonho em
alguns trechos. Ainda assim, as memórias de Casagrande e a apuração de Ribeiro
compõem um belo painel da amizade entre Sócrates e Casão, do rompimento
implícito e da reconciliação, dos amores e filhos, do calvário do vício em
drogas legalizadas (Sócrates) e ilegais (Casagrande) e, também, traz muitas
histórias impagáveis, dentro e fora de campo, como, por exemplo, uma do naipe
de João Gilberto – sim, o pai da bossa nova – realmente tentar mudar a
escalação da seleção de 1982, além de alugar Sócrates ao telefone. Para nós,
que somos de Poços, o livro ainda traz o prazer extra de contar algumas das
passagens de Casagrande na Caldense. Lembro bem de quando ouvi no rádio a
notícia da morte de Sócrates e que os jogadores do Coringão ergueram o punho em
homenagem ao seu gesto característico, na final contra o Palmeiras em 2011.
Estava na estrada, dirigindo para chegar em Franca, onde trabalhava num jornal,
e não fiquei emocionado como fiquei depois ao ler como tudo aconteceu. Enquanto
lia para meu pai, minha voz ficou embargada. Caso eu releia, agora sem a
presença do meu pai, ou leia os outros livros escritos por Gilvan e Casagrande,
creio que meus olhos ficarão marejados mais de uma vez.
Daniel Souza Luz é escritor,
revisor, jornalista e professor
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