Esta crônica foi publicada na página sete da edição 7831 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG). Em relação à publicação no jornal, só corrigi dois pequenos erros de digitação (sobrou uma palavra numa frase, em outra faltou), não fazendo uma revisão aprofundada.
Há livros que conectam os
leitores vorazes de Literatura aos leitores eventuais. Notei isso com o passar
do tempo: não são exatamente clássicos, obras que fazem parte do cânone
ocidental, nem livros de leitura obrigatória nas escolas e para vestibulares/Enem,
ou mesmo necessariamente best-sellers, mas sim livros que acabam calando fundo
no inconsciente coletivo. Podem ser tidos como subliteratura por grande parte
da crítica, mas não necessariamente o são. O Pequeno Príncipe, O Menino do Dedo
Verde, Meu Pé de Laranja Lima encaixam-se nisso: li por mera curiosidade, mas
ao escrever a respeito, notei que muita gente que parece não se interessar por
livros comenta-os comigo – e muitas vezes fazem reflexões aprofundadas. Em
comum, foram pensados para o público infanto-juvenil, ou seja, são obras de
formação. O Profeta, de Gibran Khalil Gibran, não foi pensado para um público
jovem (que eu saiba), mas talvez também seja uma obra para formar caráter,
porém, através da fé. Embora não seja meu tipo de literatura, foi uma leitura
prazerosa. Peguei para ler uma edição de 1976, traduzida por Mansour Challita,
que também fez um dos prefácios, além do Austregésilo de Athayde, escritor do
qual tenho vaga lembrança de ver na TV quando eu era criança, pois ele era
presidente da Academia Brasileira de Letras. Comecei pelo longo posfácio, na
verdade um catálogo da editora de Challita, no qual ele, meio cabotino, fala de
seus livros e de autores do Oriente Médio; depois li os prefácios, algo que não
costumo fazer antes de ler a obra. Numa noite mergulhei na trama em si e, como
Challita afirma na orelha, levou apenas duas horas de leitura. É a história de
um sábio que se despede de uma cidade, Orphalese, onde passou muitos anos,
discursando para a população. Parece-me, mal comparando, com o já citado O
Pequeno Príncipe, mas mais voltado para adultos. O Profeta, aliás, precede o
clássico de Saint-Exupéry. É mais profundo em suas reflexões sobre a vida, em
especial sobre o papel de pais e mães e numa bela alusão implícita, no meu entender,
ao sexo. Já conhecia Gibran de poemas que li no jornal do Instituto Cultural
Cia Bella de Artes, na primeira década deste século, e é impossível não notar
que ele faz prosa poética n’O Profeta. É um livro de proselitismo religioso, não
tenho dúvidas, mas a qualidade literária permite ser lido por qualquer pessoa,
inclusive ateus e agnósticos. Peca pelo esquematismo das perguntas da população
da cidade a Al-Mustafa, o profeta do título; minha impressão é que Gibran quis
de certa forma emular a Bíblia e, em especial, a vida de Jesus (o que fica
claro pela leitura do posfácio), simplificando seus ensinamentos para que mais
gente os compreenda. Parece-me, diga-se de passagem, que há paralelos entre a
desdita de Al-Mustafa não só com a de Jesus Cristo, como também com a de
Sócrates. Há uma personagem feminina, a vidente Almitra, a única do livro que
também ganha um nome, e é seu ponto de vista que dá o tom do fim, destacando o
sagrado feminino. Vejo edições recentes da obra por aí, creio que ainda é algo
que se infiltra em muitas consciências.
Daniel Souza Luz é professor,
jornalista, escritor e revisor
O jovem Khalil Gibran fotografado por Fred Holland Day. Foto de domínio público. |
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