Já repararam que Poços de
Caldas é, literalmente, o fim da linha? Escrevi essa crônica na Praça do Xadrez
Gigante, pisando sobre o tabuleiro sem peças, depois de observar atentamente o
movimento ao redor. À minha direita, está o final dos trilhos da ferrovia
Mogiana, com uma rotatória para virar a locomotiva e os vagões dos trens que
não vão até lá, que eu saiba, desde a minha adolescência, há 28 anos. Se um
maquinista ensandecido quisesse fazê-lo, teria que romper o muro da lanchonete
que avançou sobre os trilhos há uns bons dez anos, cerca de cem metros à minha
esquerda, oculta pelo prédio da antiga estação. O barulho incessante do tráfego
da rua Junqueiras, muito movimentada mesmo aos domingos, permite divisar o
canto de pássaros vez por outra. Na sombra, olho de soslaio o monumento aos
imigrantes italianos, banhado pelo sol que também ilumina o conjunto
arquitetônico mais ao fundo, o decrépito chalé do Conde Prates, que devia estar
presente na inauguração da estação ferroviária por Dom Pedro II, o qual talvez
tenha pisado no exato local onde estou, em 1886. Muita tradição, família e
propriedade para ensejar no mínimo algum abuso verbal por parte das autoridades
é o pensamento que me passa pela cabeça e me mantém alerta. Ao lado da cerca à
direita, um guarda municipal fala ao celular. Como escreveu Kerouac num pequeno
relato que consta no livro Cenas de Nova Iorque, não se pode vagabundear sem
ser importunado pelos homens da lei. Passa um pouco das duas horas. O guarda
que falava ao celular, um senhor alquebrado, cabelos todos brancos por baixo do
boné, ligeiramente curvado, vai-se distraído pela calçada. Não dirige o olhar
para onde estou; parece alheio a tudo, carregando três pães franceses em um
saco transparente. Do outro lado da rua, um senhor que caminha vagarosamente
olha insistentemente na sua direção, como se fossem velhos inimigos; mas o
guarda, imagino, só pensa em chegar em casa. Tem uma expressão aliviada e desinteressada
por qualquer conflito. Desvio o olhar para mais a esquerda, onde, no começo da
avenida, um moleque de boné observa o colega tentar seguidamente um backside
heelflip, uma manobra de skate que também nunca acerto e que me faz invejá-los
naquele momento. Então sou surpreendido pelo senhor que tão vagarosamente
andava do outro lado da rua: chegou perto de mim em um átimo. Ele usava óculos
de lentes grossas e de armação escura, um suéter verde, calças jeans puídas,
tinha a cara amarfanhada e a barba por fazer com mais fios brancos do que
negros, tal como o cabelo grisalho. Pergunta-me algo, não entendo. Aproximo-me.
“Você trabalha aqui?”. Diante da minha negativa, pede desculpas e afasta-se, célere.
Tem algo que parece um canivete suíço numa das mãos e um grande corte já
cicatrizado, mas com as bordas muito sujas, na outra. Transtornado, caminha em
direção à avenida. Os garotos já remavam seus skates para longe. Talvez eu
tenha escapado de várias ameaças e eles também.
Daniel
Souza Luz é jornalista, escritor, professor e revisor
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