Monday, September 26, 2022

Nada Aconteceu

Já repararam que Poços de Caldas é, literalmente, o fim da linha? Escrevi essa crônica na Praça do Xadrez Gigante, pisando sobre o tabuleiro sem peças, depois de observar atentamente o movimento ao redor. À minha direita, está o final dos trilhos da ferrovia Mogiana, com uma rotatória para virar a locomotiva e os vagões dos trens que não vão até lá, que eu saiba, desde a minha adolescência, há 28 anos. Se um maquinista ensandecido quisesse fazê-lo, teria que romper o muro da lanchonete que avançou sobre os trilhos há uns bons dez anos, cerca de cem metros à minha esquerda, oculta pelo prédio da antiga estação. O barulho incessante do tráfego da rua Junqueiras, muito movimentada mesmo aos domingos, permite divisar o canto de pássaros vez por outra. Na sombra, olho de soslaio o monumento aos imigrantes italianos, banhado pelo sol que também ilumina o conjunto arquitetônico mais ao fundo, o decrépito chalé do Conde Prates, que devia estar presente na inauguração da estação ferroviária por Dom Pedro II, o qual talvez tenha pisado no exato local onde estou, em 1886. Muita tradição, família e propriedade para ensejar no mínimo algum abuso verbal por parte das autoridades é o pensamento que me passa pela cabeça e me mantém alerta. Ao lado da cerca à direita, um guarda municipal fala ao celular. Como escreveu Kerouac num pequeno relato que consta no livro Cenas de Nova Iorque, não se pode vagabundear sem ser importunado pelos homens da lei. Passa um pouco das duas horas. O guarda que falava ao celular, um senhor alquebrado, cabelos todos brancos por baixo do boné, ligeiramente curvado, vai-se distraído pela calçada. Não dirige o olhar para onde estou; parece alheio a tudo, carregando três pães franceses em um saco transparente. Do outro lado da rua, um senhor que caminha vagarosamente olha insistentemente na sua direção, como se fossem velhos inimigos; mas o guarda, imagino, só pensa em chegar em casa. Tem uma expressão aliviada e desinteressada por qualquer conflito. Desvio o olhar para mais a esquerda, onde, no começo da avenida, um moleque de boné observa o colega tentar seguidamente um backside heelflip, uma manobra de skate que também nunca acerto e que me faz invejá-los naquele momento. Então sou surpreendido pelo senhor que tão vagarosamente andava do outro lado da rua: chegou perto de mim em um átimo. Ele usava óculos de lentes grossas e de armação escura, um suéter verde, calças jeans puídas, tinha a cara amarfanhada e a barba por fazer com mais fios brancos do que negros, tal como o cabelo grisalho. Pergunta-me algo, não entendo. Aproximo-me. “Você trabalha aqui?”. Diante da minha negativa, pede desculpas e afasta-se, célere. Tem algo que parece um canivete suíço numa das mãos e um grande corte já cicatrizado, mas com as bordas muito sujas, na outra. Transtornado, caminha em direção à avenida. Os garotos já remavam seus skates para longe. Talvez eu tenha escapado de várias ameaças e eles também.

Daniel Souza Luz é jornalista, escritor, professor e revisor

Este é o xadrez gigante de Poços de Caldas. Na crônica refiro-me à praça com o nome Praça do Xadrez Gigante, mas creio que o certo é Praça do Imigrante. Escrevi a crônica originalmente em 2013 para o site Clichetes. Reduzi-a drasticamente para publicá-la no jornal, creio que ficou muito melhor. Foi escrita no local, como menciono, num dia ensolarado. Tirei esta foto hoje, na data desta postagem (26/06/2022), uma segunda-feira chuvosa.   



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