Monday, January 02, 2023

Lellis, buldogue de rua

Esta crônica foi publicada na página 7 da edição 7911 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 31/12/2022. Depois da publicação no jornal o texto foi revisado pela Juliana Gandra e aqui está publicado com pequenas correções. O artigo foi baseado na minha Micrônica 2381, escrita em 14/11/2018.    

Quando morrer a última pessoa que nos conheceu pessoalmente e tinha saudade de nós, o que fica além das fotos? Ainda mais se alguém não teve uma prole, não escreveu um livro, não plantou uma árvore e não se pode dizer que deixou, portanto, um legado. Lembro-me bem de um ouvinte do programa de rádio, o Programa Pirata, que fazia na rádio universitária, a Unesp FM, nos anos 1990. Ele se chamava Fernando Lellis e mandava cartas para o programa. Eram pedidos muito bacanas de ótimas músicas. Depois ele veio conversar comigo num show, reconheceu-me pela voz. Muito gente boa, ele se parecia com o Thom Yorke e dançava como o Ian Curtis. Era uma figura única, apesar dessas referências. Não o vi neste século, mas li alguns dos fanzines virtuais dele e as colunas que escrevia para o site do Street Bulldogs, uma banda de hardcore da qual eu também gostava; aliás, fomos num show deles em 1999. Muitos anos depois descobri, chocado, que Lellis morreu jovem, de uma doença tropical. Leishmaniose, a úlcera de Bauru, a cidade na qual morávamos. Até hoje lembro-me da carta em que ele pedia para levarmos bandas ao vivo para os estúdios da Rádio Unesp. Achei impraticável; uma amiga que fazia o programa comigo, a Débora Souza, aluna de Rádio e TV, queria levar esse projeto em frente, não me recordo se estimulada ou não pela carta dele. Hoje penso que ele estava certo, devia ter colaborado neste esforço. Será que guardei as cartas? Parece que lembro que sim, mas não tenho certeza. Talvez tenham ficado no arquivo da rádio. Guardei na memória e, de certa forma, aqui neste texto. Ao menos isso. E sabem o que é triste demais no caso do Lellis? A trajetória interrompida precocemente poderia ter gerado bons livros. No e-zine dele, o Jornal Bacanal, que era enviado por e-mail, há textos fascinantes. Quando perguntei sobre o Lellis para amigos em comum e recebi a notícia desestabilizadora de que ele havia falecido há muitos anos, fucei esses e-mails e recuperei um miniconto dele. É um texto enfurecido, adolescente, chamado Baco Doesn’t Rule Anymore (heresia contra Baco). Copidesquei, precisava de revisão. Lellis era muito jovem, havia muitos erros – não muito diferentes dos que eu cometia, que fique claro. Aí o publiquei no meu blog e procurei divulgar onde poderia gerar interesse. E foi só isso, mal repercutiu, mesmo no mundinho underground que frequentávamos. Até onde sei, é o único traço que ainda existe do Lellis no mundo digital. O site do Street Bulldogs com os textos dele está fora do ar há uns quinze anos. Numa busca na web, achei uma carta da mãe dele no Jornal da Cidade (o de Bauru, não este em que escrevo) desabafando, indignada, que ele não teve o tratamento de saúde que merecia, acusando a prefeitura bauruense de omissão. Este texto também já não está mais no ar. Consternada, ela lembrava que ele era um menino sensível e talentoso. Era mesmo. Queria demais editar um livro com os textos dele, quem sabe contatá-la, mas a verdade é que sequer me recordo do nome dela e mal consigo editar meus livros. Se ganhasse na Mega-Sena – e eu mereço, tem muito babaca por aí com dinheiro cujo único objetivo na vida é explorar os outros e perpetuar essa exploração – batizaria o livro com o título dessa crônica.

Daniel Souza Luz é revisor, escritor, professor e jornalista

Fernando Lellis no detalhe de uma foto que registra uma roda de pogo durante show do Autoboneco/Bonequinho no festival Octoberfezes, em Bauru/SP, em 2001. A foto foi tirada por Nô Benini e gentilmente cedida por Ana Paula Benini. 




1 comment:

Anonymous said...

Meu irmão. Emocionei. Obrigada. Tenho material físico dele. Seria maravilhoso se virasse livro