Maria caminha cabisbaixa, rente
às paredes das velhas casinhas, todas com as frentes coladas à calçada.
Eventualmente tem que se abaixar, devido a alguma janela aberta, sempre essas
de madeira, mas não desvia do seu caminho, longe da rua. Para para pensar por
um instante: será que tem medo atávico de ser atropelada ou teme sair da casa
dos pais? Não consegue ver sentido em nenhuma das duas coisas ou ver algum
sentido no jeito como caminha, mas deve haver algum. Desiste de se
auto-analisar e segue seu caminho. Prefere seguir no fluxo. O instinto, sem
pensar muito, é poesia. Foi a poesia que a ensinou isso.
A faina foi extenuante. No
momento, tudo o que quer é tomar um banho quente e não pensar em nada. Mas não
consegue. Bola um novo poema pouco antes de chegar e já corre para o
computador. Atualiza sua página, mas ninguém dá atenção por mais de meia hora.
Enquanto espera por alguém curtir a publicação, arruma uma treta com um
moleque, amigo de uma velha amiga, mas uns cinco anos mais novo, o qual escreveu
um comentário estúpido: “mulher deveria agradecer por ser chamada de gostosa,
mesmo não sendo”. Dá-lhe uma lição sobre feminismo, mas o fedelho responde
cinicamente a todos os argumentos. Vermelha de raiva, fecha a tampa do notebook
com força e começa a se despir para se banhar. A mãe, passando pelo corredor,
atenta à cena, pergunta o que foi aquilo. Maria não responde objetivamente,
apenas murmura um “Não foi nada não” e vai pro chuveiro.
Refeita, vai jantar. Dona Zulmira
a observa, preocupada. Até mesmo Maria chama a mãe de “Dona Zulmira”, como se
Dona fosse o primeiro nome de Zu, como ela realmente gosta de ser chamada.
Apenas o pai de Maria, falecido há pouco, chamava Zulmira de Zu.
- Filha, o que você tem?
- Nada Dona Zulmira, tô bem!
- Agora você até está. Mas você
não está bem. Mãe não se engana.
Maria continua a comer, quieta.
Não quer se irritar mais. Desde que abandonou a igreja evangélica que frequentava
com os pais, sentindo-se desobrigada com a morte de Zé, seu velho pai, ela vem
sendo mais questionada pela mãe.
- Filha, você está ficando velha.
Precisa se casar, como seus irmãos.
- Mãe! Eu por acaso preciso ter
filhos, me casar, ser como os outros? Isso é normatização.
- Fico feliz por você me chamar
de mãe. Eu sou sua mãe, sim.
Maria fica desconcertada. Depois
de um silêncio desconfortável, a mãe resolve quebrar o gelo jogando lenha na
fogueira para o circo incendiar-se sem chance das chamas serem debeladas.
- Maria... Por que você não volta
com o André? Um menino tão bom...
- Mas que heteronormatividade,
mãe! Eu não sou mais como era; ele é religioso, machista. Aceita que eu sou
ateia agora. Aceita, mãe.
Dona Zulmira sabe que tem mais
dois fatos incômodos que ela tem que aceitar. Aceitar, ela aceita. Mas queria
um netinho.
- Maria, se você quer ter vários
namorados...
- Não são namorados. Não quero
ter. Não tenho ninguém e ninguém me tem, não sou propriedade de ninguém. E não
são só, como você chama, namorados...
- Eu sei, eu sei.
- Então tá bom assim.
- Se está bom assim, por que você
não é feliz? Você está sempre infeliz. De cara amarrada. Brigando com todo
mundo.
- Eu sou feliz.
- Eu sei que você não é. Você
fica nesse computador o dia todo, brigando com os outros.
- Eu não faço só isso. Eu saio
com minhas amigas. Eu administro a minha página. Eu escrevo. Eu gosto disso. Eu
tava brigando com um menino machista. Eu não aceito mais esse mundo patriarcal.
As frases saem num jorro. No que
a mãe rebate de bate pronto.
- Mas você não é feliz.
- Eu sou feminista. O mundo é
cruel e me estresso mesmo. Eu tenho que exercer a sororidade, minhas irmãs
precisam de mim. Já te expliquei o que é isso.
Zulmira se irrita.
- Você fica falando de amor
livre... A Augustina é minha amiga.
- Isso é passado. Põe uma pedra
nisso.
- Você foi lá fofocar sobre o
filho dela pra namorada dele que tava na Bélgica. Eles se separaram por sua
causa. Você sabe. O menino tá com depressão até hoje.
- Eu era outra pessoa na época.
- Mas a sua amiga Alice pode
chifrar a Carol que você não fala nada? Cadê sua sororidade com a Carol?
Maria fica muda. Atônita.
- Como você sabe disso, mãe?
- Não interessa. E o assunto não
é da minha conta. Não é da sua conta também, mas você passa pano para tudo que
a Alice faz, só que você deveria era cuidar da sua vida. Tá na sua cara que
você não é feliz. Na sua cara.
- Para de fingir que é jovem,
mãe. Passar pano. Passar pano – ironiza Maria, imitando a voz de Zulmira.
- Quem finge ser algo que não é,
é você. Eu só falei algo que você me ensinou. Mas você entendeu o recado. Para
de viver em função dos outros. Você é que finge ser algo que não é.
- Olha aqui...
- Não vou olhar nada. Sou sua
mãe. Não sou patriarcal. Você pare de fingir algo que não é. Você sempre quis
ter filhos, se casar. Todo mundo muda, mas ninguém muda tanto assim. Para de
fingir ser quem você não é para bancar a grande feminista. Você pode ser, sem
ser essa farsa infeliz. Para de odiar o mundo. O mundo é o mundo. Você não odeia
a Alice que faz do mundo um lugar ainda pior. Você não acha que a Carol não vai
sofrer por culpa dela? Então para de odiar os outros. Você era uma menina boa.
Não tô falando pra você voltar a ser uma menina. Tô pedindo para você voltar a
ser uma pessoa boa.
Maria engole em seco as lágrimas
que se recusa a derrubar em frente à mãe. Tranca-se no quarto. Abre o notebook.
Duzentos e setenta e sete pessoas curtiram o poema que postou no início da
noite. Sente-se enternecida. Sendo assim, consegue dormir.
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