Monday, November 30, 2015

Burning Image

Com o filme queimado, mas não sabia disso. Nem conhece a expressão, é nova demais, nem sabia que a má fama maculava seu nome no lugar.
Foi apelidada de Samarca. Gostava de falar das marcas das roupas com as quais desfilava. Essas marcas para as quais dizia não se importar um ano antes.
Ela mesma enterrou-se na lama.

Monday, November 23, 2015

Comsat Angels

Coadjuvante do Gasparzinho também teve seu gibi. Reprodução da capa de uma velha edição brasileira.


Vários dos meus melhores amigos eram de desenhos animados e de gibis. Eles eram tão legais quanto os melhores amigos da vida. Ninguém brigava com ninguém, nem os amigos da vida e nem os dos desenhos e dos gibis comigo; os amigos dos desenhos só brigavam entre si na TV e nas revistas, mas ninguém nunca se machucava – não se machucava muito – ou morria. Nos gibis do Gasparzinho os fantasmas e os diabinhos também não morriam. Ninguém morria, nem os mortos.
Minha tia ficava abismada toda vez que via um amigo meu atirando no outro na TV.
- É normal tia, ninguém morre de verdade.
Aí um dia, bem numa hora em que minha tia apareceu em casa sem eu saber, o Jerry matou o Tom com um tiro. Ele não foi pro céu e continuou vivo. Ele morreu mesmo.
- Viu, te falei! As pessoas morrem sim.
Essa tia era chata. A inocência também não foi pro céu.

Sunday, November 15, 2015

The Sound

Para Adrian Borland

A consciência se expande para além do corpo. Não é nenhuma bobagem mística. Não creio em nenhuma delas. É um estado induzido, propositalmente induzido, mas cujo controle é uma rédea esquecida em uma casa abandonada há centenas de quilômetros, dias antes. Uma fuga do corpo. Quando finalmente é bem-sucedida, no entanto, é aterrorizante. Os neurônios, na ponta dos dedos, são tocados por pensamentos incorpóreos, mas extremamente conscientes da expansão pelo ar. Talvez possam esvair, sem retorno. Por isso agarram-se à pele.
Um som de sino. Distante, vem se aproximando.
- Que merda, você está lendo muito Phillip K. Dick e brisando demais.
Reprodução de Daniel in the Lion's Den, quadro de Briton Rivière (1872)

Ela agarra meu pau. Escapei de mim mesmo e retornei, enlaçado pelos baixos instintos. Os melhores; será?...

Sunday, November 08, 2015

Baader-Meinhof Blues

Será que se chamava aparelho, como no Brasil? O fato é que adentrei no apartamento e fui bem recebido.
Estava brincando no prédio e um amigo me chamou para participar do grupo. Eu devia ter uns 14 ou 15 anos, dá para depreender pela aparência do meu amigo, um moleque branquelo, de bochechas rosadas. Ele me disse que me viram no edifício e gostaram da minha atitude – seja ela qual for, não faço ideia.
 estavam eles: Andreas Baader e Ulrike Meinhof. Não reconheci Gudrun Ensslin entre os presentes, não havia nenhuma loira. Devia ter umas sete ou seis pessoas na sala do apartamento. Quando a porta se abriu, notei que eu estava em nos anos setenta. Todos os homens usavam golas rolê com pulôveres ou paletós, alguns tinham costeletas; as mulheres vestidos com muitos botões e botas, além de óculos escuros e boinas. O apartamento parecia ser todo acarpetado, o estilo dos móveis era típico dos anos 1970. Eu não sei explicar por que os móveis são desta época; não sou bom em descrever detalhes de sofás e mesas, mas eu me lembro desse estilo, seja em filmes, seja porque eu tenho memórias deste tipo de mobiliário no fim da década de setenta, quando tinha entre quatro e seis anos.
Havia mais um visitante, além de meu amigo e eu – um Pantera Negra. Fiquei impressionado. Ninguém disse que era, mas só podia ser. Negro, com cabelo Black Power, com uma barbicha e uma postura arrogante. Fiquei surpreso de ver os dois grupos juntos. A cena era impressionante e ficou mais ainda.
Mal nos cumprimentamos – ninguém nos deu as mãos, pois estavam vidrados no noticiário policial da TV, como no filme que fala sobre o Baader-Meinhof. Não daria tempo, pois a polícia logo irrompeu pela porta. Armas na mão, junto ao corpo, e extremamente ágeis, logo dominaram todos. Notei que estava escrito Gendarmerie – a polícia francesa – nos uniformes deles. Eu era francês então.
Apesar disto, no sonho todos falavam português, lógico. Um policial mascarado agarrou a mim e meu amigo pelos braços. Ele nos disse para ficarmos tranquilos, pois eles sabiam que estávamos sendo cooptados. Era só para irmos na delegacia amanhã. Sendo arrastado porta afora, ainda vi os policiais torturando Baader, enfiando sua cabeça num saco plástico. Escada abaixo, enquanto o policial insistia para ficarmos tranquilos, ressaltando que era só irmos prestar depoimento na delegacia no dia seguinte e tudo ficaria bem, senti náuseas, pois não queria ter participado e nem visto nada daquilo. Era um pesadelo, de verdade – portanto, de mentira. Antes de acordar, ao lado das viaturas da Gerdarmerie na garagem do prédio, notei que também havia uma escrita Polizei. Os agentes alemães tinham vindo pegá-los.

A sensação nauseante não passou quando acordei. Talvez tenha sido o mais assustador dos pesadelos, pois foi com fantasmas que me foram contemporâneos, embora tenham morrido alhures muitos anos antes de ouvir falar neles.

Sunday, November 01, 2015

DNA, uma crônica no wave onírica

Para Ikue Mori, Arto Lindsay, Robin Crutchfield e meus irmãos Fernanda e Eurico

Sempre soube que eram sonhos, eram fantásticos e eram recorrentes. Poderiam até ser realidade, ao menos no começo os percebia como reais enquanto eles aconteciam, pois era criancinha quando eles começaram e eu ficava um pouco confuso por o cenário sempre ser o apartamento onde vivia e no início sempre era de noite neles.
Foram proto-sonhos lúcidos, portanto; meu primeiro sonho lúcido, no entanto, foi uns anos depois destes preâmbulos fantásticos, mas ainda era criança quando aconteceu: estava no pátio do Colégio Canadá, onde fiz o jardim da infância, e uma freira me mandou parar de brincar e voltar para a sala. Estranhei, pois em primeiro lugar não parecia tanto assim o Colégio Canadá, que não existe mais (mas ainda existia, à época do sonho). Em segundo lugar, embora eu ficasse louco para voltar para casa e assistir desenhos animados, na verdade eu gostava desta escola, justamente porque era um ambiente alegre e laico. Não havia aulas de religião e muito menos freiras. Então, no meio do sonho, tomei CONSCIÊNCIA DE QUE ESTAVA SONHANDO.
Meu primeiro sonho lúcido foi libertador, uma experiência inesquecível para uma criança. Não fiquei apavorado, não tive paralisia do sono e não sabia que existia o termo “sonho lúcido”. Só fiquei muito feliz, tanto como quando estudava no Colégio Canadá. Na época deste sonho já estudava em outra escola, hoje centenária, num ambiente mais repressor.
Como sabia que estava sonhando, interpelei a freira e disse-lhe “Isto é um sonho. Você não manda em mim”. Era uma senhora, ela fez uma cara de decepcionada... Ainda virei para ela mais uma vez e disse “Você não existe, vou continuar brincando”. E fiquei na caixa de areia, com um carrinho de plástico vermelho na mão. Acordei pouco depois, mas feliz. Durou pouco essa mobilidade onírica consciente, mas foi marcante. Décadas depois, vi uma cena semelhante no filme Vanilla Sky, do diretor Cameron Crowe.
Saudades desse Colégio Canadá. Lembro-me que o diretor se chamava Sérgio e ele dava aulas de judô ou karatê – alguma arte marcial; só lembro que não era kung fu – para nós. Mas era algo muito lúdico, todos tínhamos seis anos ou menos. Eu tinha sentimentos muito divididos sobre a escola: eu detestava não poder assistir desenhos animados e invejava meu irmão mais novo, Eurico, que ficava em casa assistindo-os. Por outro lado, ele queria demais ir à escola comigo e eu não entendia isso. Mas quando chegava ao colégio era um ambiente tão bom e aprendia tantas coisas tão alegremente que esquecia dos desenhos do Zero (sim, além do gibi, existia um desenho animado), do Johnny Quest, Carangos e Motocas, Speed Racer e tantos outros que adorava.
Na hora de ir embora, pela qual eu tanto ansiava antes, para poder ver TV com meu irmão (minha irmã Fernanda ainda não havia nascido), no entanto, eu ficava apavorado. É que havia uma oficina mecânica na avenida João Pinheiro, num local onde hoje há uma padaria, e eu ficava apavorado ao ver as faíscas de quando eles soldavam algo. Eu deveria achar que algo ia explodir ou que estavam montando um robô assassino gigante ali, sei lá. Minha experiência com a escola era uma montanha-russa de emoções conflitantes. O Colégio Canadá, no fim, foi parar perto da casa onde morei nos anos noventa e morreu quieto, eu acho, na mão de outros proprietários, pelo o que sei. Um pedacinho que se perdeu da história de Poços de Caldas.
Toda esta divagação e ainda não falei dos sonhos fantásticos que tinha desde criancinha. Não há como descrever a maravilha visual que eram estes sonhos, simplesmente não há palavras para isto. Mas o que sempre acontecia é que olhava pela janela do apartamento onde morei quando era criança e estava tudo certo com a paisagem: o quintal do prédio, com uma casinha de utensílios para o jardineiro e vários varais, alguns com roupa. Em frente, os fundos de uma casa. Mas o céu sempre era diferente: às vezes, eu via o núcleo da Via Láctea. A Lua geralmente não aparecia, mas vários planetas apareciam tendo o mesmo tamanho dela ou maiores, como se estivessem muito mais próximos. Júpiter, Marte e especialmente Saturno eram presenças constantes. Em vários desses sonhos, quando eu abria a cortina, havia outros planetas, desconhecidos e maravilhosos, por perto. Não era nada como Melancolia, não era ameaçador – era deslumbrante. Discos voadores eventualmente cruzavam o céu. Não era sempre que apareciam e raramente eram ameaçadores. Às vezes o tráfego de OVNIs era intenso. Nos únicos casos em que me senti ameaçado por eles, eles sempre vinham sobrevoando de trás do teto de uma casa cinza cuja lateral ficava à esquerda. Estas casas, assim como o prédio, existem até hoje no mundo real. Exatamente por isso, como disse minha irmã dias atrás, o prédio se parece com um sonho.
O curioso a respeito dos discos voadores que sempre surgiam sinistramente por detrás da casa cinza, tendo ao fundo as montanhas, é que muitas vezes eles surgiam de dia e este virava noite. Mas eles nunca pousaram ou destruíram nada. Eventualmente viravam teco-tecos. Ou seja, nunca foram perigosos.
Embora estes sonhos com o céu transformado tenham começado em tenra idade, continuei tendo-os mesmo depois que mudei do prédio. Foram inúmeros, sempre fascinantes, por décadas, do fim dos anos setenta até neste século. Tive-os até recentemente.
O prédio onde cresci. Tirei a foto em 2012.
O último foi há um par de anos. Sonhei que a banda no wave DNA estava tocando no quintal do prédio. Poderia ter descido lá o Mars, outra banda da mesma cena e com nome de planeta, mas alguma engrenagem onírica escolheu o DNA. Dois integrantes, Arto Lindsay e Ikue Mori, estavam lá, tocando muito baixo para uma banda tão barulhenta e experimental, ao lado de um terceiro integrante indistinto, como se fosse o fantasma do tecladista Robin Crutchfield. Corri para a janela para vê-los, não queria perder um segundo da apresentação descendo a escada até lá. Afinal, se o DNA estava tocando no quintal do meu prédio sem qualquer motivo, se eu descesse até lá talvez eles não estivessem mais lá quando eu chegasse. Apenas algumas crianças estavam vendo-os. Então notei que o céu era igual ao dos meus sonhos recorrentes. Repentinamente, era noite, Saturno estava enorme no céu e discos voadores nos sobrevoavam. Foi a última vez que sonhei com este céu fantástico, que não aparece em nenhuma outra paisagem onírica – ele ocorre apenas no quintal do meu predinho da infância. Sempre que acontece, a sensação remete ao título de uma música de outra banda no wave, o Teenage Jesus and the Jerks: eu acordei sonhando.