Sempre soube que eram sonhos,
eram fantásticos e eram recorrentes. Poderiam até ser realidade, ao menos no
começo os percebia como reais enquanto eles aconteciam, pois era criancinha
quando eles começaram e eu ficava um pouco confuso por o cenário sempre ser o
apartamento onde vivia e no início sempre era de noite neles.
Foram proto-sonhos lúcidos,
portanto; meu primeiro sonho lúcido, no entanto, foi uns anos depois destes
preâmbulos fantásticos, mas ainda era criança quando aconteceu: estava no pátio
do Colégio Canadá, onde fiz o jardim da infância, e uma freira me mandou parar
de brincar e voltar para a sala. Estranhei, pois em primeiro lugar não parecia
tanto assim o Colégio Canadá, que não existe mais (mas ainda existia, à época
do sonho). Em segundo lugar, embora eu ficasse louco para voltar para casa e
assistir desenhos animados, na verdade eu gostava desta escola, justamente
porque era um ambiente alegre e laico. Não havia aulas de religião e muito
menos freiras. Então, no meio do sonho, tomei CONSCIÊNCIA DE QUE ESTAVA
SONHANDO.
Meu primeiro sonho lúcido
foi libertador, uma experiência inesquecível para uma criança. Não fiquei
apavorado, não tive paralisia do sono e não sabia que existia o termo “sonho lúcido”.
Só fiquei muito feliz, tanto como quando estudava no Colégio Canadá. Na época
deste sonho já estudava em outra escola, hoje centenária, num ambiente mais
repressor.
Como sabia que estava
sonhando, interpelei a freira e disse-lhe “Isto é um sonho. Você não manda em
mim”. Era uma senhora, ela fez uma cara de decepcionada... Ainda virei para ela
mais uma vez e disse “Você não existe, vou continuar brincando”. E fiquei na
caixa de areia, com um carrinho de plástico vermelho na mão. Acordei pouco
depois, mas feliz. Durou pouco essa mobilidade onírica consciente, mas foi
marcante. Décadas depois, vi uma cena semelhante no filme Vanilla Sky, do
diretor Cameron Crowe.
Saudades desse Colégio
Canadá. Lembro-me que o diretor se chamava Sérgio e ele dava aulas de judô ou
karatê – alguma arte marcial; só lembro que não era kung fu – para nós. Mas era
algo muito lúdico, todos tínhamos seis anos ou menos. Eu tinha sentimentos
muito divididos sobre a escola: eu detestava não poder assistir desenhos
animados e invejava meu irmão mais novo, Eurico, que ficava em casa
assistindo-os. Por outro lado, ele queria demais ir à escola comigo e eu não
entendia isso. Mas quando chegava ao colégio era um ambiente tão bom e aprendia
tantas coisas tão alegremente que esquecia dos desenhos do Zero (sim, além do
gibi, existia um desenho animado), do Johnny Quest, Carangos e Motocas, Speed
Racer e tantos outros que adorava.
Na hora de ir embora, pela
qual eu tanto ansiava antes, para poder ver TV com meu irmão (minha irmã
Fernanda ainda não havia nascido), no entanto, eu ficava apavorado. É que havia
uma oficina mecânica na avenida João Pinheiro, num local onde hoje há uma
padaria, e eu ficava apavorado ao ver as faíscas de quando eles soldavam algo.
Eu deveria achar que algo ia explodir ou que estavam montando um robô assassino
gigante ali, sei lá. Minha experiência com a escola era uma montanha-russa de
emoções conflitantes. O Colégio Canadá, no fim, foi parar perto da casa onde
morei nos anos noventa e morreu quieto, eu acho, na mão de outros
proprietários, pelo o que sei. Um pedacinho que se perdeu da história de Poços
de Caldas.
Toda esta divagação e ainda não
falei dos sonhos fantásticos que tinha desde criancinha. Não há como descrever
a maravilha visual que eram estes sonhos, simplesmente não há palavras para
isto. Mas o que sempre acontecia é que olhava pela janela do apartamento onde
morei quando era criança e estava tudo certo com a paisagem: o quintal do
prédio, com uma casinha de utensílios para o jardineiro e vários varais, alguns
com roupa. Em frente, os fundos de uma casa. Mas o céu sempre era diferente: às
vezes, eu via o núcleo da Via Láctea. A Lua geralmente não aparecia, mas vários
planetas apareciam tendo o mesmo tamanho dela ou maiores, como se estivessem
muito mais próximos. Júpiter, Marte e especialmente Saturno eram presenças
constantes. Em vários desses sonhos, quando eu abria a cortina, havia outros
planetas, desconhecidos e maravilhosos, por perto. Não era nada como
Melancolia, não era ameaçador – era deslumbrante. Discos voadores eventualmente
cruzavam o céu. Não era sempre que apareciam e raramente eram ameaçadores. Às
vezes o tráfego de OVNIs era intenso. Nos únicos casos em que me senti ameaçado
por eles, eles sempre vinham sobrevoando de trás do teto de uma casa cinza cuja
lateral ficava à esquerda. Estas casas, assim como o prédio, existem até hoje
no mundo real. Exatamente por isso, como disse minha irmã dias atrás, o prédio
se parece com um sonho.
O curioso a respeito dos
discos voadores que sempre surgiam sinistramente por detrás da casa cinza,
tendo ao fundo as montanhas, é que muitas vezes eles surgiam de dia e este
virava noite. Mas eles nunca pousaram ou destruíram nada. Eventualmente viravam
teco-tecos. Ou seja, nunca foram perigosos.
Embora estes sonhos com o
céu transformado tenham começado em tenra idade, continuei tendo-os mesmo
depois que mudei do prédio. Foram inúmeros, sempre fascinantes, por décadas, do
fim dos anos setenta até neste século. Tive-os até recentemente.
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O prédio onde cresci. Tirei a foto em 2012. |
O último foi há um par de
anos. Sonhei que a banda no wave DNA estava tocando no quintal do prédio.
Poderia ter descido lá o Mars, outra banda da mesma cena e com nome de planeta,
mas alguma engrenagem onírica escolheu o DNA. Dois integrantes, Arto Lindsay e
Ikue Mori, estavam lá, tocando muito baixo para uma banda tão barulhenta e
experimental, ao lado de um terceiro integrante indistinto, como se fosse o fantasma
do tecladista Robin Crutchfield. Corri para a janela para vê-los, não queria
perder um segundo da apresentação descendo a escada até lá. Afinal, se o DNA
estava tocando no quintal do meu prédio sem qualquer motivo, se eu descesse até
lá talvez eles não estivessem mais lá quando eu chegasse. Apenas algumas
crianças estavam vendo-os. Então notei que o céu era igual ao dos meus sonhos
recorrentes. Repentinamente, era noite, Saturno estava enorme no céu e discos
voadores nos sobrevoavam. Foi a última vez que sonhei com este céu fantástico,
que não aparece em nenhuma outra paisagem onírica – ele ocorre apenas no
quintal do meu predinho da infância. Sempre que acontece, a sensação remete ao
título de uma música de outra banda no wave, o Teenage Jesus and the Jerks: eu
acordei sonhando.