Monday, February 24, 2020

Segunda-feira de Cinzas

Os telefones tocam em vão.
Todos com quem preciso conversar não foram trabalhar. Estão metendo, cochilando, bebendo e dando baixaria, queimando as carnes brancas no mormaço, jogando frescobol, cheirando, vendo mulher pelada na televisão, vendo revista de homem pelado no banheiro, baixando filmes pornôs, brochando em suítes caras de motéis vagabundos para no máximo ganhar uma chupada, discutindo com os pais velhinhos para depois jantar com eles, ralhando com os filhos e levando-os para tomar sorvete, nadando em piscinas com 37% de mijo, pulando ondas de coliformes fecais enquanto tomam água de coco, andando de bicicleta na chuva, sendo presas por desacato à autoridade, dançando nus em frente ao espelho, lendo Stephen King, ouvindo jazz na praça, comendo pipoca na fila do cinema, socando a fuça do adversário no xadrez, jogando RPG com os primos bestas, passeando com três vira-latas em forma de Cérbero, jogando confete nas novinhas, beijando as travestis, tomando facada no bar, enrolando prostitutas com serpentina e chacoalhando-se atrás do trio elétrico. Tem quem esteja trancado no quarto, ouvindo Bauhaus, sendo tão feliz quanto os outros. Só alegria, o bordão surgido sabe-se lá onde me incomoda pra caralho.
Não é tristeza. Estou exasperado, pensando, impotente, cumprindo tabela, esperando que amanhã não perca o dia inteiro dormindo pra compensar a insônia que não posso descontar agora. O picareta do chefão veio dar exemplo. Trabalhou duas horas e foi embora rangar e fazer a sesta. Enquanto mofamos na firma, inúteis, por mero capricho e pão-durismo.
Daniel Souza Luz é professor, escritor, jornalista e revisor

Este conto foi publicado em 22 de fevereiro de 2020 na página oito da edição 7222 do Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG). É uma versão levemente ampliada e reescrita, evitando um termo preconceituoso que usei outrora, de um conto de mesmo nome, que publiquei aqui no blog em três de maio de 2007.


Carnaval em Mérida, no México, 08/03/2011. Foto de Theodor Hensolt, via Creative Commons. A original pode ser encontrada aqui e a página dele no Flickr é Theodor Hensolt, Street Fotographer (Fotógrafo de Rua).


Thursday, February 13, 2020

Garfield e seus Amigos 2 (resenha que fiz para o Good Reads)

Garfield e Seus Amigos 2Garfield e Seus Amigos 2 by Jim Davis
My rating: 2 of 5 stars

Lembro-me que no filme Vamos Nessa um personagem reclama de uma tirinha (não é o Garfield) que fica por último na ordem de leitura do jornal e estraga todas as outras. Achei bem sacado, pois este é o meu caso com o Garfield: eu até lia, mas, apesar de ser a última tira (ou ao menos era) na página de quadrinhos da FSP, era a primeira que eu lia, pois achava fraquinha em comparação às demais, daí era um crescendo de prazer. Às vezes nem a lia. Eu pulava tanto a leitura das HQs dele que só agora descobri que tinha outro gato, o Nermal, que também aparecia nas tirinhas às vezes. Esta compilação é de tiras dos anos noventa, justamente quando eu fazia isto todos os dias. Mostra que não perdi muita coisa, mas também está longe de ser ruim. Li numa sala de espera. Dei uma ou duas risadas, valeu a leitura.


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Friday, February 07, 2020

Esconde-esconde

No começo de janeiro li uma ótima crônica (ou ótimo conto, não sei) da escritora Letícia Novaes, que é mais conhecida no mundo da música e no qual atende pelo pseudônimo Letrux. Chamado Férias Forever, o texto logo no início menciona que ela é de uma geração que tirava férias por três meses na virada do ano. Fiquei pensando mesmo nisso na última vez em que escrevi uma crônica sobre meus tempos de férias na infância; parece que não eram só dois meses de descanso... Eu me lembro de uma vez ou outra voltar a ter aulas no finalzinho de fevereiro, mas é aquilo mesmo que ela diz: apesar de ser um pouco mais velho do que a Letícia, também sou do tempo em que as aulas voltavam em março. Hoje vejo crianças voltando às aulas no final de janeiro e acho muito estranho. É outro mundo, ainda mais competitivo.
Antes as férias eram tão estendidas e prazerosas que quando se machucava feio ainda dava tempo de aproveitá-las. Lembro bem, porque uma das brincadeiras favoritas da criançada era (e suponho que ainda seja) esconde-esconde. Numa dessas, me estrepei. Mas não foi culpa minha. É que eu tinha um colega muito atrapalhado. Já já chego lá.
O bacana do bairro da minha infância, o Marçal Santos, era que as ruas eram relativamente pouco movimentadas. Geralmente o pique era na rua Platina, onde eu morava, e valiam as adjacências das ruas de baixo e de cima, respectivamente Berilo e também Marçal Santos. Havia árvores, carros, pequenas moitas, reentrâncias nos muros e vários pequenos esconderijos. Naquela época havia, e talvez ainda haja, a “regra” de que o último a ser descoberto salvava todos os que haviam sido pegos, bastava chegar antes no pique e bater três vezes nele. Quem estava procurando não podia mais escolher quem foi pego para substituí-lo e voltava a desempenhar seu papel de, digamos assim, rastreador. Este hábito levava a desabaladas carreiras, às vezes na frente de carros em movimento, para salvar a galera. E não tinha tira-teima quando perseguidor e perseguido batiam quase ao mesmo tempo. Lembro que uma vez meu amigo Daniel loirinho dançou nessas quatro vezes seguidas. Ele ficou desanimado e foi embora para casa, choroso.
Pique esconde, diga-se de passagem, era uma brincadeira bem democrática. Participava gente de todas as idades, dos seis aos quatorze anos. Por isso todos os esconderijos foram ficando manjados. E às vezes vacilávamos também. Não me esqueço do dia em que achei que estava muito bem escondido atrás de uma árvore na rua Berilo. Meu amigo Márcio, o Baiano, gritou de longe, gargalhando: “Estou vendo seus Kicks, tá pego Daniel!”. Kick era uma marca de tênis para andar de skate que nos anos oitenta fazia uns tênis de cano alto, fechados com velcro, numas cores vermelho e verde berrantes – que aliás soltavam tanta tinta que manchavam as meias, desculpa mãe. Virei alvo fácil, camuflagem não rolava assim.
Enfim, como a brincadeira era frequente e literalmente todo mundo conhecia os esconderijos, passando a ser o atletismo e não a habilidade de se mimetizar a melhor arma, o pessoal foi ficando mais ousado. Valiam até os limites das casas das esquinas nas ruas adjacentes. Alguém teve a ideia, então, de pular o muro da casa do Coruja, um amigo nosso que morava (e ainda mora) em Santos e não vinha sempre passar férias em Poços, portanto muitas vezes sua casa na Marçal Santos ficava vazia. E nos considerávamos de casa. Então ficávamos lá, morrendo de rir, abafadamente, da cara de quem passava na rua nos procurando e não fazia ideia do novo esconderijo. E quando quem nos procurava descia para a rua Berilo, descíamos em massa para o pique e salvávamos todo mundo.
Minha desdita aconteceu por isso. Uma bela tarde, pulei lá primeiro, junto com meu amigo Evandro, o Bugu. Ah, pra quê? Meu irmão e meus amigos Paulo Augusto e Baiano acharam por bem esconder-se lá também. Não estando cientes da nossa presença, o Márcio pulou o muro e caiu com os dois pés em cima da minha cabeça. Não vi, claro. Só senti a porrada repentina; contaram-me que foi assim. Como estava me virando para o lado para falar com o Evandro, mordi a língua. É um músculo bem vascularizado, sangra abundantemente. O que acho engraçado, hoje em dia, é que não fiz uma tomografia nem nada disso, que me lembre. Nem sei se era um exame acessível à época. Meus pais levaram-me para médico e ele só cuidou da minha língua mesmo. Não passei mal e nem nada assim, apesar do banho de sangue; acho que isso colaborou.
Bem, só sei que não tomei ponto, ainda bem. Do jeito que estava dilacerada já doía demais – a maior dor que havia sentido na vida, até então. A solução foi ficar de repouso e só poder tomar sopa e líquidos por umas semanas. Foi um martírio. Tudo bem, acho que umas duas semanas depois eu já estava na rua de novo. Brincando de esconde-esconde. Sem traumas.


Daniel Souza Luz é escritor, jornalista e revisor

Este conto foi publicado originalmente no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em primeiro de fevereiro de 2020. Saiu na página nove da edição 7207. 

Kindred: Laços de Sangue, de Octavia E. Butler, é um livro fascinante (resenha que fiz para o Good Reads)

Kindred: Laços de sangueKindred: Laços de sangue by Octavia E. Butler
My rating: 5 of 5 stars

Minha primeira leitura de 2020 foi desta escritora de ficção científica da qual nunca tinha ouvido falar até o ano passado. Fiquei fascinado e comprei o livro em abril de 2019, assim que descobri a existência dela. Só li em janeiro de 2020 pois é uma obra de fôlego, bastante extensa, que exige dias menos atribulados para ser devidamente apreciada, ao menos no meu entender. Agora estou muito curioso para ler outras obras da autora, pois a questão da indexação é muito interessante para mim. A única relação com FC neste livro é a viagem no tempo, no meu entender. No entanto, ela não tem uma explicação científica ou racional, o que aproxima a obra muito mais da fantasia. Creio que é categorizado como ficção científica porque a Octavia Butler assim o quis - e se for o caso, acho que ela está mais do que certa. Suas outras obras, pelo pouco que li, parecem ser mais de FC propriamente dita. De qualquer forma, é um livro fascinante. Quando comentei com amigos que estava lendo-o e perguntaram sobre o que era, um deles, o Tiago Barreiro, me contou que o Chris Rock já tinha feito uma piada sobre isso: viagem no tempo é coisa de branco, quem é negro jamais vai querer construir uma máquina que faça isso, pois é arriscado demais voltar ao passado. Kindred: Laços de Sangue é exatamente sobre isso. E com certeza é por isso que a protagonista, Dana, não tem controle sobre suas idas ao passado. Elas simplesmente acontecem, contra sua vontade. Sendo uma mulher negra, Butler escolheu escrever sobre uma mulher negra contemporânea (no caso, dos anos setenta: Dana e o marido Kevin Franklin vivem em 1976; o livro foi lançado originalmente em 1979) que é lançada aos tempos da escravidão num estado sulista, Maryland, antes da Guerra da Secessão. A tensão da trama se estabelece justamente porque Dana, ao guardar uma bíblia que está com a família há gerações, sabe que pouco ou nada pode fazer para impedir as situações de abuso que presencia, pois é jogada a um passado no qual reconhece os nomes de seus antepassados. Ao contrário, precisa protegê-los, mesmo quando agem de forma vil. E eles são justamente o filho de um senhor de escravos e uma escrava. Daí o título do livro. Os pequenos defeitos da trama e da escrita - respectivamente o fato de que são situações de violência que a fazem a voltar para presente e no entanto ela passa a literalmente senti-las na pele sem retornar e o uso frequente da expressão "franzir a testa" (seria isso um maneirismo da tradução?) - são totalmente recompensados pela força avassaladora da narração. E esta força está justamente no fato de que Dana, apesar de tudo, tenta impedir os abusos escravocratas. Por isso, sofrerá castigos inimagináveis para ela, uma mulher livre vivendo na Califórnia do século vinte e que perde progressivamente o direito ao próprio corpo. As descrições das torturas físicas e psicológicas que ela e os demais escravos sofriam transportam o leitor para o passado tanto quanto a protagonista; são muito vívidas. E revoltantes. É envolvente ao ponto de se ficar indignado, mesmo que hoje saibamos sobre todas as infâmias da escravidão. Particularmente, tive que que interromper a leitura diversas vezes, pois era intenso demais e me causava profunda consternação. Não bastasse isto, a autora também adianta, já àquela época, questões hoje prementes, como a tensão de relações inter-raciais na contemporaneidade e não só num passado distante em que elas resumiam-se, basicamente, a estupro e posse.


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