No começo de janeiro li uma
ótima crônica (ou ótimo conto, não sei) da escritora Letícia Novaes, que é mais
conhecida no mundo da música e no qual atende pelo pseudônimo Letrux. Chamado
Férias Forever, o texto logo no início menciona que ela é de uma geração que
tirava férias por três meses na virada do ano. Fiquei pensando mesmo nisso na última
vez em que escrevi uma crônica sobre meus tempos de férias na infância; parece
que não eram só dois meses de descanso... Eu me lembro de uma vez ou outra
voltar a ter aulas no finalzinho de fevereiro, mas é aquilo mesmo que ela diz:
apesar de ser um pouco mais velho do que a Letícia, também sou do tempo em que
as aulas voltavam em março. Hoje vejo crianças voltando às aulas no final de
janeiro e acho muito estranho. É outro mundo, ainda mais competitivo.
Antes as férias eram tão
estendidas e prazerosas que quando se machucava feio ainda dava tempo de
aproveitá-las. Lembro bem, porque uma das brincadeiras favoritas da criançada
era (e suponho que ainda seja) esconde-esconde. Numa dessas, me estrepei. Mas
não foi culpa minha. É que eu tinha um colega muito atrapalhado. Já já chego
lá.
O bacana do bairro da minha
infância, o Marçal Santos, era que as ruas eram relativamente pouco
movimentadas. Geralmente o pique era na rua Platina, onde eu morava, e valiam
as adjacências das ruas de baixo e de cima, respectivamente Berilo e também
Marçal Santos. Havia árvores, carros, pequenas moitas, reentrâncias nos muros e
vários pequenos esconderijos. Naquela época havia, e talvez ainda haja, a
“regra” de que o último a ser descoberto salvava todos os que haviam sido
pegos, bastava chegar antes no pique e bater três vezes nele. Quem estava
procurando não podia mais escolher quem foi pego para substituí-lo e voltava a
desempenhar seu papel de, digamos assim, rastreador. Este hábito levava a
desabaladas carreiras, às vezes na frente de carros em movimento, para salvar a
galera. E não tinha tira-teima quando perseguidor e perseguido batiam quase ao
mesmo tempo. Lembro que uma vez meu amigo Daniel loirinho dançou nessas quatro
vezes seguidas. Ele ficou desanimado e foi embora para
casa, choroso.
Pique esconde, diga-se de
passagem, era uma brincadeira bem democrática. Participava gente de todas as
idades, dos seis aos quatorze anos. Por isso todos os esconderijos foram
ficando manjados. E às vezes vacilávamos também. Não me esqueço do dia em que
achei que estava muito bem escondido atrás de uma árvore na rua Berilo. Meu
amigo Márcio, o Baiano, gritou de longe, gargalhando: “Estou vendo seus Kicks,
tá pego Daniel!”. Kick era uma marca de tênis para andar de skate que nos anos
oitenta fazia uns tênis de cano alto, fechados com velcro, numas cores vermelho
e verde berrantes – que aliás soltavam tanta tinta que manchavam as meias,
desculpa mãe. Virei alvo fácil, camuflagem não rolava assim.
Enfim, como a brincadeira
era frequente e literalmente todo mundo conhecia os esconderijos, passando a
ser o atletismo e não a habilidade de se mimetizar a melhor arma, o pessoal foi
ficando mais ousado. Valiam até os limites das casas das esquinas nas ruas
adjacentes. Alguém teve a ideia, então, de pular o muro da casa do Coruja, um
amigo nosso que morava (e ainda mora) em Santos e não vinha sempre passar
férias em Poços, portanto muitas vezes sua casa na Marçal Santos ficava vazia.
E nos considerávamos de casa. Então ficávamos lá, morrendo de rir,
abafadamente, da cara de quem passava na rua nos procurando e não fazia ideia
do novo esconderijo. E quando quem nos procurava descia para a rua Berilo,
descíamos em massa para o pique e salvávamos todo mundo.
Minha desdita aconteceu por
isso. Uma bela tarde, pulei lá primeiro, junto com meu amigo Evandro, o Bugu.
Ah, pra quê? Meu irmão e meus amigos Paulo Augusto e Baiano acharam por bem
esconder-se lá também. Não estando cientes da nossa presença, o Márcio pulou o
muro e caiu com os dois pés em cima da minha cabeça. Não vi, claro. Só senti a
porrada repentina; contaram-me que foi assim. Como estava me virando para o
lado para falar com o Evandro, mordi a língua. É um músculo bem vascularizado,
sangra abundantemente. O que acho engraçado, hoje em dia, é que não fiz uma
tomografia nem nada disso, que me lembre. Nem sei se era um exame acessível à
época. Meus pais levaram-me para médico e ele só cuidou da minha língua mesmo.
Não passei mal e nem nada assim, apesar do banho de sangue; acho que isso
colaborou.
Bem, só sei que não tomei
ponto, ainda bem. Do jeito que estava dilacerada já doía demais – a maior dor
que havia sentido na vida, até então. A solução foi ficar de repouso e só poder
tomar sopa e líquidos por umas semanas. Foi um martírio. Tudo bem, acho que
umas duas semanas depois eu já estava na rua de novo. Brincando de
esconde-esconde. Sem traumas.
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