Este conto foi publicado no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 12 de junho de 2021 como presente de dia dos namorados para minha namorada, Juliana Gandra, que revisou o texto. É uma paródia de filmes de terror e ficção científica e propositadamente infame, como as melhores produções do cinema B.
Achei minha fitinha do My
Bloody Valentine. Ouvia sem parar nos anos noventa, mas fazia uns vinte anos
que estava parada. Não jogo nada fora, ficou acumulando poeira num canto do
armário. Só que agora consertei meu aparelho de som; ficou uma nota, mas tá tocando
fita cassete de novo. Estava mastigando as fitas antes, mesmo as novas que
comprei recentemente e que custaram o olho da cara. Maldito fetiche da
mercadoria que fode meu bolso já fodido, antes era tão baratinho...
- Olha meu cassete do My
Bloody Valentine. Tem a primeira meia hora do Isn’t Anything de um lado e a
primeira meia hora do Loveless do outro. Foi uma amiga que gravou pra mim nos
anos noventa.
Ela responde com um muxoxo.
- “Amiga”. Sei. Grande
“amiga”.
- Era amiga mesmo.
- Dá para ouvir os discos
completos em qualquer serviço de streaming.
Pus para tocar mesmo assim. O
som estava muito bom, dado o tempo que se passou. A gravação que eu fazia
deixava tudo um pouco mais grave. Fiquei ouvindo, extasiado. A TV está ligada
no mudo, ela mais interessada nas imagens do que no som.
- Achei que você gostava
deles.
- Gosto. Estou ouvindo.
Fecho o olho e fico viajando
em Cupid Come. Quando a música está quase no fim, abro os olhos e ela está
boquiaberta olhando para a televisão. Então olho também, para ver o que estava
se passando, e vi a notícia: uma bomba nuclear explodiu no sertão da Bahia. Ou
um meteorito. Há pânico no olhar dos apresentadores.
- Olha! A janela!
Por cima da serra, brilha uma
espécie de halo azul. Um azul cobalto fascinante, bem diferente do azul do dia
sem nuvens. Logo depois, escutamos um rumor estranho, ao longe, como se fosse
uma espécie de microfonia celestial.
- Estamos sendo atacados?
- Não. Deve ser uma explosão
de meteorito, como o de Tunguska. Estava demorando muito mesmo para a Terra ser
atingida por um meteorito grande. Desde 1908! Desliga a TV, será que esse
barulho não é dela também?
- Já está desligada.
Nos dias seguintes o céu ficou
claro como se fosse dia. Ainda bem que a terceira guerra não começou por causa
disso. Foi apenas um meteorito, tal como eu havia previsto. Bem, mais ou menos.
Na cratera de impacto, os primeiros pesquisadores foram atacados. Estamos sendo
invadidos!
Em três horas as criaturas
chegam aqui na cidade, a centenas de quilômetros do local da aterrissagem. Parecem
gelatinas de morango disformes. Movem-se rápido, são pequenas e pululam nas
ruas. As pessoas trancam-se em casa. Não adianta nada, as gelatinas quebram as
janelas e invadem os orifícios, qualquer um, dos humanos e animais. Mas não
acontece nada com ninguém ou nenhum bicho, apenas se reproduzem rapidamente e
saem por algum orifício, aliás qualquer um também. As notícias no rádio e TV
deixam isso bem claro, apesar do constrangimento dos âncoras.
- Ah, mas em mim não!
- Nem em mim. E quem disse que
não vai acontecer nada depois?
- Sem falar na superpopulação
dessas gelatinas siderais. Vão acabar nos matando de outro jeito.
Então bolei o plano. Nos
trancamos no banheiro. Uma gelatina esgueira-se debaixo do vão da porta. Jogo
um pacote de sal em cima. Ela desintegra-se, não como as lesmas da infância,
mas sim numa pequena explosão, e voa meleca na minha namorada, que me protege
como um escudo humano.
- Vamos ligar para a TV e
anunciar o método!
Viramos heróis. Assistir a
tantos filmes B tem a sua valia. Ganhamos uns títulos nas câmaras municipal e dos
deputados. Mas só isso, pois ser herói não tem nenhuma mais-valia; exterminar
alienígenas não dá dinheiro.
*Feliz dia dos namorados, Juju.
Daniel Souza Luz é jornalista, revisor,
professor e escritor
Selfie do dia dos namorados de 2021. Ela que tirou, eu estava dormindo. |