Monday, June 14, 2021

Minha Namorada Sangrenta*

Este conto foi publicado no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 12 de junho de 2021 como presente de dia dos namorados para minha namorada, Juliana Gandra, que revisou o texto. É uma paródia de filmes de terror e ficção científica e propositadamente infame, como as melhores produções do cinema B. 

Achei minha fitinha do My Bloody Valentine. Ouvia sem parar nos anos noventa, mas fazia uns vinte anos que estava parada. Não jogo nada fora, ficou acumulando poeira num canto do armário. Só que agora consertei meu aparelho de som; ficou uma nota, mas tá tocando fita cassete de novo. Estava mastigando as fitas antes, mesmo as novas que comprei recentemente e que custaram o olho da cara. Maldito fetiche da mercadoria que fode meu bolso já fodido, antes era tão baratinho...

- Olha meu cassete do My Bloody Valentine. Tem a primeira meia hora do Isn’t Anything de um lado e a primeira meia hora do Loveless do outro. Foi uma amiga que gravou pra mim nos anos noventa.

Ela responde com um muxoxo.

- “Amiga”. Sei. Grande “amiga”.

- Era amiga mesmo.

- Dá para ouvir os discos completos em qualquer serviço de streaming.

Pus para tocar mesmo assim. O som estava muito bom, dado o tempo que se passou. A gravação que eu fazia deixava tudo um pouco mais grave. Fiquei ouvindo, extasiado. A TV está ligada no mudo, ela mais interessada nas imagens do que no som.

- Achei que você gostava deles.

- Gosto. Estou ouvindo.

Fecho o olho e fico viajando em Cupid Come. Quando a música está quase no fim, abro os olhos e ela está boquiaberta olhando para a televisão. Então olho também, para ver o que estava se passando, e vi a notícia: uma bomba nuclear explodiu no sertão da Bahia. Ou um meteorito. Há pânico no olhar dos apresentadores.

- Olha! A janela!

Por cima da serra, brilha uma espécie de halo azul. Um azul cobalto fascinante, bem diferente do azul do dia sem nuvens. Logo depois, escutamos um rumor estranho, ao longe, como se fosse uma espécie de microfonia celestial.

- Estamos sendo atacados?

- Não. Deve ser uma explosão de meteorito, como o de Tunguska. Estava demorando muito mesmo para a Terra ser atingida por um meteorito grande. Desde 1908! Desliga a TV, será que esse barulho não é dela também?

- Já está desligada.

Nos dias seguintes o céu ficou claro como se fosse dia. Ainda bem que a terceira guerra não começou por causa disso. Foi apenas um meteorito, tal como eu havia previsto. Bem, mais ou menos. Na cratera de impacto, os primeiros pesquisadores foram atacados. Estamos sendo invadidos!

Em três horas as criaturas chegam aqui na cidade, a centenas de quilômetros do local da aterrissagem. Parecem gelatinas de morango disformes. Movem-se rápido, são pequenas e pululam nas ruas. As pessoas trancam-se em casa. Não adianta nada, as gelatinas quebram as janelas e invadem os orifícios, qualquer um, dos humanos e animais. Mas não acontece nada com ninguém ou nenhum bicho, apenas se reproduzem rapidamente e saem por algum orifício, aliás qualquer um também. As notícias no rádio e TV deixam isso bem claro, apesar do constrangimento dos âncoras.

- Ah, mas em mim não!

- Nem em mim. E quem disse que não vai acontecer nada depois?

- Sem falar na superpopulação dessas gelatinas siderais. Vão acabar nos matando de outro jeito.

Então bolei o plano. Nos trancamos no banheiro. Uma gelatina esgueira-se debaixo do vão da porta. Jogo um pacote de sal em cima. Ela desintegra-se, não como as lesmas da infância, mas sim numa pequena explosão, e voa meleca na minha namorada, que me protege como um escudo humano.

- Vamos ligar para a TV e anunciar o método!

Viramos heróis. Assistir a tantos filmes B tem a sua valia. Ganhamos uns títulos nas câmaras municipal e dos deputados. Mas só isso, pois ser herói não tem nenhuma mais-valia; exterminar alienígenas não dá dinheiro.

*Feliz dia dos namorados, Juju.  

Daniel Souza Luz é jornalista, revisor, professor e escritor


Selfie do dia dos namorados de 2021. Ela que tirou, eu estava dormindo.


1 comment:

Unknown said...

Adorei! hahaha