Esta resenha foi publicada no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em 31 de julho de 2021 - ou seja, apenas onze dias após o lançamento do livro e um dia depois de recebê-lo pelo correio. Por isso o "neste mês" no texto, agora já mês passado. Portanto, é um livro que merece uma releitura. Muitos pontos que chamaram a atenção nos poemas, como os hábitos que cultivamos nas redes sociais, não estão presentes na resenha, por questões de espaço e de ter sido escrita à queima-roupa. Mais uma vez citando o posfácio de Ricardo Pinto de Souza: este texto também é um guia para uma leitura inicial. O texto foi revisado pela Juliana Gandra para a publicação no jornal e o revisei novamente para publicá-lo aqui; basicamente, só eliminei uma vírgula que ela inseriu, inclui uma crase que estava faltando, consertei uma frase para não haver repetição exagerada do termo "aqui" e pus o nome completo do Jorge (também conhecido como Jorgeras).
Conheci a poeta Ana Luíza Drummond há dez anos,
numa viagem para Ouro Preto, quando visitei sua casa em Mariana. Ela é
companheira de Jorge Benedito Freitas, meu ex-aluno, hoje já com doutorado em Letras, em
que estudou o grande poeta judeu Paul Celan. Lembro-me de Jorge lendo seus
poemas em saraus espontâneos, sem divulgação prévia ou incentivos culturais,
num barzinho na rua Rio Grande do Sul, em meados da primeira década deste
século. Ana Luíza, que eu não sabia que escrevia, é quem lança um livro de
poesias neste mês. Ela já morou em Poços de Caldas também, por um breve período
de tempo, quando foi minha colega no núcleo local do curso pré-vestibular
Educafro, no qual lecionou Português. Seu primeiro livro foi lançado em 20 de
julho deste ano pelo selo Leme, da editora Impressões de Minas. Ao lê-lo e
fazer anotações mentais para esta resenha, acabei tendo uma impressão muito
parecida com a registrada no posfácio, escrito por Ricardo Pinto de Souza: a de
que a obra se divide em três partes, ainda que a autora não tenha estabelecido
essa divisão formalmente. Na primeira, ela relembra e, o mais importante,
revive sua infância, ressignificando as relações com a família. É especialmente
pungente o poema no qual aborda a relação paterna: “Esta é minha
cena-carta-poema do perdão: livro-me/Nela me escrevo para assombrar-te:
existo/Nela iludo lei e pai” é um dos trechos mais fortes. Ao contrário de
Pinto de Souza, no entanto, entendo que não é o belo poema Mito, que abre o
livro e é dedicado à mãe de Ana Luíza, que dá a chave de compreensão dessa
primeira parte. Isso já está posto na dedicatória à avó Almerinda. É o ser e
crescer mulher que permeia o livro até a segunda parte, que também identifiquei
ter o mesmo tema destacado por Pinto de Souza no “percurso interpretativo” que
ele estabelece e que percorri na mesma senda até aqui, inconsciente de sua
proposição: a da descoberta de si e de ser mulher num mundo hostil e misógino. Nela se (re)afirma o corpo e a sexualidade numa linguagem sem pejo, na qual
termos como “buceta” e “meu cio” são usados não para chocar moralistas
conservadores (que ficariam desgostosos de qualquer forma), mas para refletir
sobre sua condição – e de todas as mulheres, num viés feminista. Curiosamente,
é aqui que Ferros, cidade mineira na qual Ana Luíza nasceu e chegou a ser
secretária municipal de Educação, é mencionada e evocada mais diretamente. As
lembranças de uma idade mais tenra na cidade natal aparecem quando a autora se
vê numa rotina no Rio de Janeiro que pouco lembra o estereótipo do carioca “sangue
bom”. Esse encontro com si mesma, como bem observado no posfácio, deve-se muito
ao nascimento de Flora, quando ela e Jorge moravam em Alfenas (agora estão em
Timóteo; ao menos foi de lá que Ana Luíza me enviou o livro), pois “modifica e
problematiza tanto a memória do passado quanto o sentido do presente”. Este
“memória do passado” algo pleonástico de Pinto de Souza, não está errado; a
terceira parte me fez lembrar de “Memories of Tomorrow”, do grupo de hardcore
Suicidal Tendencies. Mas não estamos num mundo devastado por uma guerra nuclear
e sim num país em processo de destruição por um presidente ignorante e
neonazista (agora com laços assumidos com o partido neonazi alemão). A terceira
parte do livro é menos sobre o espanto com o mundo atual, como entende Pinto de
Souza, e mais de indignação política e alguma esperança, no meu entender. Nesse
caso, há um feliz acidente, ao menos no exemplar que recebi: as páginas 53 e 54
se repetem três vezes; é justo no poema 14 de março de 2018. Esta é a data do
assassinato de Marielle Franco. Provavelmente não é proposital, mas acabou
vindo a calhar ler os mesmos versos repetidamente, pois é uma data que ecoa até
hoje, sem parar, sem parar, sem parar.
Daniel Souza Luz é revisor, jornalista,
professor e escritor
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