Esta crônica foi publicada no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 25 de setembro de 2021. Foi revisada atentamente pela Renata Chan. É uma sátira política inspirada no Machado de Assis, John Boyne (no final) e principalmente no grande Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta. E, claro, nos transfóbicos políticos da terrinha, em especial naquele que se acha o lídimo representante da liberdade de expressão - desde que seja a dele, senão não procuraria interditar a discussão da identidade de gênero.
1921. Na modorrenta Poções de Cura,
cidade interiorana que passara da condição de vila no começo do século, a
pequena população foi chacoalhada por um intrépido vereador, que trouxe, para o
júbilo do seu proponente, um debate então inaudito à câmara e que logo ganharia
repercussão nas ruas e até fora da província. Em moção de apoio a Arthur
Bernardes, que então ocupava a chamada Presidência do Estado de Minas Gerais e que
no ano seguinte ocuparia a presidência de fato do Brasil, o nobre edil Claudelino
Marcel Queiroga Neves Pazuello de Carvalho saiu-se com o seguinte discurso,
tido por muitos como um disparate, mas que encheu de orgulho o bravo orador,
maravilhado com a própria oratória:
- Faz muito bem nosso grande
líder desse Estado em vetar os projetos apresentados pela oposição. Vejam bem,
tenho convívio e até amizade com pretos e mulatos, não se trata de
conservadorismo, até porque a douta princesa Isabel extinguiu a escravidão, mas
é um absurdo que a oposição queira dar mais guarida ainda a essa gente, que já
tem direitos demais desde então. Daqui a pouco vão querer usar os mesmos
banheiros que nós!
Surpreendido, o líder da
oposição local pede a palavra, agastado desde o princípio do discurso delirante.
- Mas o que vossa senhoria
quer dizer com isso? Mas já não usam? Racismo é um absurdo. Queiram nossos
governantes que um dia isso seja crime! Jamais havia escutado tamanha aleivosia
neste magnânimo espaço, até então prístino!
Inabalável, Claudelino
retorquiu de imediato.
- Pois crime aqui deveriam ser
considerados o samba e a capoeira, tal como já fazem na capital da nação! Se vossas
senhorias não sabem, no Rio a polícia coíbe tais manifestações ditas
“culturais”, que impedem que alcancemos nosso papel de novos timoneiros da
cultura greco-romana, que Deus há de nos legar!
Atônitos, os demais membros do
legislativo assistem calados à tagarelice que compraz Claudelino. O líder da
oposição é a exceção.
- Pois saiba que aqui não há
segregação por lei, como há nos Estados Unidos, nobre colega!
Claudelino não se fez de
rogado.
- Essas ideologias de
igualdade importadas vão destruir a família brasileira! São piores do que o
nazismo e o fascismo.
Neste momento, o narrador, que
apenas era observador, irrompe pelas portas da câmara, tornando-se
participante, e dispara:
- Não cabe falar de nazismo
aqui, estamos em 1921! Fascismo, talvez, afinal, Mussolini já apronta das suas
na Itália, mas nazismo não! Trata-se de um anacronismo que está prejudicando a
narrativa!
Claudelino assente e agradece
a intervenção.
- Para que vossas melhorias
entendam meu brilhante raciocínio, usarei um exemplo melhor, pois sou um facho
de luz que vos ilumina. Quando as tropas do safardana Solano López, o
bolivariano ditador paraguaio, nos atacavam, era possível ver as baionetas e
balas de canhão vindo na nossa direção. Já esse novo inimigo é invisível,
insidioso. Adentra nossos lares, o corrompem com a ideia de igualdade; é uma
desonra para nossa sociedade, tão elevada em seus princípios.
Neste momento o narrador
torna-se onisciente, o que não deixa de ser uma blasfêmia, e ciente da
perversidade dos pensamentos de personagem tão ignaro, não se contém e encerra
a história com a seguinte fala:
- Em primeiro lugar, tu não
passas de um facho de luz na contramão que obscurece nossa visão! Em segundo
lugar, mesmo que Bolívar seja tido como um herói na América Latina, está muito
cedo para usar o termo bolivariano, tratando-se de outro anacronismo que
conspurca essa narrativa. Por fim, todo preconceito é odioso e a totalidade do
seu discurso é repugnante, digno do biltre, do sacripanta, que tu és. Daqui um
século tudo isso estará superado. Não é possível que os tribunais superiores
tenham que considerar crime racismo e outros preconceitos contra seres humanos
que não têm nosso perfil daqui a cem anos, pois até lá a humanidade terá
evoluído muito, esses reacionarismos estarão extintos, e quem os exarar terá o
ostracismo que merece. Não é possível que eu esteja sendo tão ingênuo.
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