Tuesday, September 21, 2021

Nêmese

Este conto foi escrito em 20 de janeiro de 2014. Revisei-o na véspera, sem alterar nada da história, para publicação no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 18 de setembro de 2021. O conto mostra o destino de um dos personagens do meu primeiro livro/plaquete, No entanto, o reescreverei radicalmente para o meu segundo livro/plaquete. 

Ecsel mira o morro que se descortina a uns quinhentos metros, quando o mormaço dos exaustores da usina eólica dissipa o sinomog abrupta e brevemente. Ecsel mira celeremente. A ex-esposa do Gerente municipal estava passeando com o pug de estimação na rua central do condomínio, tal como lhe foi minuciosamente informado pelo mandante. O silenciador da metralhadora de precisão funciona a contento. A mulher tomba com o rosto irremediavelmente desfigurado. O pug está ileso, conforme foi expressamente encomendado. Com o focinho alongado cirurgicamente com o dinheiro do mandante, Gonzo bate num poste ao correr e olhar para trás ao mesmo tempo, vítima de sua falta de noção espacial devido à intervenção do veterinário na face. O mandante, observando do escritório pela cam do seu drone, tem um esgar de arrependimento, preocupado com Gonzo, que provavelmente fraturou o excerto ósseo.

Ecsel desmonta rapidamente a metranca, enfia-a na barriga falsa coberta pelo vestido, abre a porta da casa de serviço do telhado da clínica de fertilização transgênica, desce e sai incógnito, confundindo-se com os demais grávidos.

Nas ruas esvaziadas, no entanto, Ecsel aperta o passo. Os ataques dos neoavivamentistas contra os transgêneros ou os hippocampistas tornaram-se frequentes até mesmo em cidades com meros duzentos mil habitantes. Pelejando há dois anos para sair de uma cidade pequena, Ecsel adotou a estratégia de receber apenas em avatar para evitar ser rastreado. Em dois meses fará 14 anos e atingirá a maioridade penal, mas mesmo assim quer evitar qualquer estigma. É um perfeccionista e não pretende cumprir qualquer medida socioeducativa. Já é a 17ª encomenda e, pelas suas contas, conseguirá converter os avatares em uma soma razoável de créditos reais, mesmo perdendo no paralelo; o suficiente para financiar um quarto com banheiro em Manaus e toda a faculdade de engenharia de impressão. Sem que os pais desconfiem de que é o matador de aluguel que mais assombra a concessionária de segurança pública, pois ambos creem que Ecsel ganha tudo monitorando fluxos de opinião para as campanhas eleitorais do avô, o Supervisor distrital. Basta ser discreto. Enquanto minhocava essas questões na cabeça, para seu desgosto, a circunstância estragou a discrição. Dois quarteirões adiante topa com Hugo, um colega de sala do Ciclo Básico. Pensa que talvez terá de eliminar Hugo e o cumprimenta com um sorriso contrito.

- Oxe, seu nome é Êcsel, né?

- Não, se pronuncia Écsel.

- Que diferente, de onde que veio esse nome?

- É de um cantor de uma banda da qual minha mãe gostava. – Ecsel estava pensando em atirar à queima-roupa mesmo, já tendo acionado o disruptor remoto das câmeras de segurança daquelas ruas antes de sair da clínica.

- Nunca ouvi falar.

- É coisa de velho.

O taser de Hugo estava regulado para infarto fulminante e fez dessas as últimas palavras de Ecsel. Ele achou que Ecsel havia comprado um bebê semipronto. Não o questionou, nem se questionou, só viu mais um negacionista dos cisgêneros – é assim que os neoavivamentistas os denominam. Tornou-se inconscientemente o assassino mais prolífico da cidade. Sem pensar em reconhecimento argentário, almejando apenas a benção de seu pastor.

Daniel Souza Luz é jornalista, professor, revisor e escritor

Meu primeiro livro/plaquete, lançado em 2019. A capa foi ilustrada pela Juliana Melo.  


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