Escrevi este conto em 2008. Resolvi tirá-lo da gaveta e foi publicado no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 11 de dezembro de 2021. Como o texto já tinha 13 anos, precisei reescrevê-lo para atualizar referências tecnológicas. De qualquer forma, o reescreveria mesmo em parte, pois eliminei elementos do texto original que denotavam forte influência do Bukowski, o que me irrita profundamente hoje. Mas não se enganem, ainda sou fã do Buk.
A
única música que me dava arrepios era The Carnival Is Over, mas hoje em dia não
sinto quase nada. O prazer de ouvir a música é muito vago. Mas ao menos isso.
Nenhum outro som me desperta algo. Ou despertava. O que tornou especialmente
difícil escutar, de bobeira, Feel Good The Hit Of The Summer, que não diz nada
com nada, e voltar a associar uma música a uma pessoa. A lembrança de Anna
desabou sobre mim com o peso de uma banda que eu não ouvia há muito tempo e da
qual nós tanto gostávamos. Só havia algo no mundo que eu gostava mais do que
aquele CDzinho azul do Rated R: da Anna. Eu o perdi, a perdi. Se foi o
interesse por ambos, mas não consegui bloquear a lembrança dela. Apenas a tirei
de foco.
Chorei
e não sou disso. Não chorava desde que tinha uns onze anos. Sempre detestei,
fui ensinado a crer que era coisa de maricas. Foi foda, o impacto sonoro suspendeu
o entrave mnemônico que havia me imposto. Malditos algoritmos do modo aleatório
dos serviços de streaming. Encomendei uma edição especial do CD, já que o
passado voltou tão veementemente. Bobagem, podia ter escutado online mesmo. Na minha
mente, as faixas já se reordenaram e estão tocando na ordem certa. Já tinha
tudo de cor, internalizado. Bem, não senti nada, de novo, quando tirei o CD do
invólucro e pus para rodar. Se fosse só isso estava bom. Mas não. As
recordações daquele tempo com Anna, de qualquer forma, me deixaram abalado em
outros momentos nada musicais. Não sabia mais nada sobre ela, a não ser que
tinha se mudado da casa dos pais.
Pois
bem, resolvi procurar por ela nas redes sociais. Nada. Mas uma busca na web me
revela o número e endereço do consultório dela. Agora ela trabalha com
constelação familiar. Caramba, que picaretagem. Mas é tarde, estou obcecado.
Avalio
por uma meia hora, andando de um lado para o outro e tomando café, se devo
ligar ou aparecer na porta do consultório dela como se eu não quisesse nada. No
fim, resolvi ligar. Ela atende, não consigo falar. Nunca fui dessas coisas, que
idiota. Sou mais cretino ainda ao ligar novamente e pôr o telefone em frente ao
som, sem falar nada, enquanto o Rated R está rolando no volume máximo. Depois
de uns trinta segundos abaixo o som e resolvo falar um oi, mas ela já havia
desligado. Será que ela entendeu o que estava acontecendo? Espero meia hora
para ver se ela retorna a ligação. Largo mão de frescura: agora ligo direto pra
ela, que atende com frieza. Ela tinha sacado sim que era eu. Avisa que ainda
escuta muito o disco, pois o marido comprou a reedição em vinil de 180 gramas. Ah
tá, entendi o recado. Depois de algum papo protocolar, tchau. Sheila está me
esperando em casa, impaciente e ligando no meu celular a cada cinco minutos.
Daniel Souza Luz
é professor, escritor, revisor e jornalista
A reedição em vinil do Rated R, disco do Queens of Stone Age lançado originalmente com a capa azul em 2000.
2 comments:
Boa! qual versão da musica é a referida?
Obrigado pela leitura, Sid. Se for The Carnival Is Over, é a música do Dead Can Dance.
https://www.youtube.com/watch?v=mPDLJ1UU2Uk
Post a Comment