Este artigo foi publicado originalmente na página nove do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 19 de fevereiro de 2022. O texto foi revisado pela Juliana Gandra.
Casa da Cultura de Poços de
Caldas (ou IMS, se quiserem), meados da primeira década deste século. O
escritor gaúcho João Gilberto Noll veio fazer uma palestra. Nunca havia lido
nada dele, conhecia-o apenas de ler a respeito nos cadernos culturais dos
grandes jornais brasileiros. Sabia que ele era muito estimado pela crítica, foi
vencedor várias vezes do prêmio Jabuti. Eu trabalhava numa rádio ridícula, com
uma súcia inacreditável e chefes picaretas. Pensei comigo mesmo: pelo menos vou
aproveitar o espaço para falar de algo bom e vou lá entrevistá-lo. Mesmo sem
ganhar hora-extra e nem nada disso; eu sequer combinava nada com a chefia.
Simplesmente fazia e foda-se. Depois eu matava um pouco de serviço para
compensar. Na verdade, fiz isso várias vezes, em todas as ocasiões em que algum
escritor descia do Olimpo das capitais e vinha visitar o equipamento cultural
da provinciana Poços. A entrevista com Noll, no entanto, marcou-me mais do que
outras nessas ocasiões. Ele era um erudito e um gentleman. Mencionei na
entrevista que me lembrava muito fortemente de uma reportagem sobre ele n’O
Globo, na qual era relatado que ele estava vivendo em completo desalento. Isso
havia sido em 1991 ou 1992, eu era adolescente e essa imagem de um escritor
brasileiro vivendo à beira da miséria e do ostracismo, mesmo que premiado, me
foi muito reveladora e marcante. Noll me disse que também se lembrava vivamente
da matéria, mas me disse isso havia sido muito tempo atrás e que sua situação
melhorara. Dava para imaginar, ele parecia muito elegante no terno em que
usava. Talvez não fosse um terno bem cortado, mas como não é um assunto do qual
entendo e ele se portava de modo muito cavalheiresco e afável, a imagem que retive
foi a de um homem elegante. Eu perdi a fita com essa entrevista; a rádio na
qual trabalhava, como já disse, era (e é) uma porcaria, portanto resta apenas
minha memória deste encontro e conversa. E o que mais me causou espécie foi a
palestra dele. Eu não era o único que não o havia lido ali; a maioria também
não. Talvez ninguém. Alguma escola levou muitos alunos adolescentes para
assistirem à palestra. É óbvio que isso redundou num desastre. Noll falava com
uma voz muito fina, impressionantemente aguda, muito mais do que quando ele
conversou comigo. Talvez estivesse muito nervoso por falar em público, embora
parecesse muito sereno ao gravar a entrevista. Ele abria a boca para dizer
qualquer coisa e o público, desinteressado e naturalmente cruel, devido à faixa
etária e ao espírito de manada, mal conseguia disfarçar os risinhos de mofa. Alguns
deixavam escapar uma ou outra gargalhada mais alta. E Noll ali na mesa, sério, eventualmente
lançava alguns olhares evidentemente preocupados para o público, mas seguia
inabalável falando sobre literatura e seu trabalho. Ele faleceu em 2017 e,
quando soube da notícia, lembrei-me imediatamente da sua recusa digna a servir
de bufão para o deleite de quem o escarnecia.
Daniel Souza Luz é jornalista,
escritor, revisor e professor
Capa da edição gringa do romance Harmada, de João Gilberto Noll. |
1 comment:
É tão legal lembrar que existe a palavra "gentleman". Me faz ter esperanças de que ainda existam outros por aí.
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