Monday, March 28, 2022

30 Artistas LGBTQ+ Incríveis, de Débora Thomé (resenha)

Esta resenha foi publicada na página 10 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 26 de março de 2022. O texto foi revisado pela Juliana Gandra.

Este livro é destinado para adolescentes, mas deveria ser lido por adultos. Veio como acompanhamento do romance O Parque das Irmãs Magníficas, escrito pela argentina Camila Sosa Villada, uma mulher trans, distribuído neste mês pelo clube de livros TAG. Provavelmente, por isso, vai acabar sendo mais lido por adultos mesmo, que talvez os repassem para leitores mais jovens, seu público-alvo. O ideal seria é que esses passassem para seus pais: minha geração, agora se aproximando dos cinquenta anos ou com um pouco mais do que isso, permanece agressivamente homofóbica e transfóbica – como eu também fui na juventude. Em geral, usam a desculpa clichê do “mimimi” e justificam seus preconceitos abjetos dizendo que aceitam ser alvos de piadas por serem loiras ou baixinhos como se essas características lhe trouxessem dificuldades de sobrevivência. É patético, no mínimo, e quem sabe a leitura de uma obra como essa lhes trouxesse ao menos alguma empatia e menos ignorância. É um painel limitado, como a autora reconhece, mas, mesmo assim, trouxe surpresas até mesmo para ela e o organizador, Richarlls Martins, o que dirá então para mim. Não apenas por trazer figuras menos conhecidas, como a transformista Gisberta e a rapper Katú Mirim, mas por falar sobre a sexualidade de pessoas muito conhecidas e que eu não fazia a menor ideia de que tinham saído do armário, caso do ator Marco Nanini e da jornalista Leilane Neubarth (ou seja, nem todos os perfilados são artistas). Ótimo sinal, aliás: significa que a mídia em geral não faz mais escândalos com o assunto, a exemplo das sensacionalistas e medíocres revistas de fofoca que eu folheava quando era criança e nas quais alguém era sempre acusado (não há outro termo para aquilo) de ser gay. Uma revelação impressionante que o livro traz, ao menos para mim, é que João do Rio era homossexual e negro. Já tendo devorado um livro dele, visto uma peça escrita por ele e lido inúmeros artigos a respeito do famoso autor carioca, fico impressionado como esses dois dados sempre foram omitidos. Grave sinal de como os apagamentos ainda vicejam por aí. Por essas e outras que este livro é muito bem-vindo às estantes de leitores de qualquer idade, sendo uma leitura ágil, com muita informação bem pesquisada e atraente para todos os públicos: há artigos desde divas pop como Pablo Vittar e Ludmilla, passando por intelectuais ativistas como Luiz Mott e João Silvério Trevisan, até João W. Nery, o primeiro homem trans do Brasil, também escritor. Ou seja, é uma obra que cumpre exemplarmente seus objetivos e até os ultrapassa.

Daniel Souza Luz é escritor, professor, jornalista e revisor






Wednesday, March 23, 2022

Na Natureza Selvagem, de Jon Krakauer (resenha)

Esta resenha foi publicada na página oito do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 19 de março de 2022. É uma versão atualizada da que escrevi para o Good Reads em 2019; eu mesmo revisei o texto, o que pode significar que deixei passei erros, devido ao olhar já estar viciado. 

Como a maioria das pessoas, creio, descobri a existência do livro após assistir ao filme homônimo. Há treze anos estava em casa num final de semana, doente, decidi não sair e liguei a TV. Estava passando por acaso, vi que era dirigido pelo Sean Penn, decidi assistir. A história de Chris McCandless era fascinante e desesperadora. Com o passar dos anos notei que muitos amigos adoram a história e a trilha sonora, composta por Eddie Vedder, o vocalista do Pearl Jam. Peguei o livro emprestado em 2013 e por uma série de circunstâncias desfavoráveis o devolvi após ler apenas os dois primeiros capítulos, mas ele não me saiu da cabeça. Há três anos o peguei emprestado novamente com uma amiga e finalmente pude me embrenhar nele. Li um capítulo por dia, pacientemente. Dava muita vontade de devorá-lo de uma vez, mas decidi me conter, para memorizar melhor a saga de McCandless - ou Alex Supertramp, tal qual ele decidiu chamar-se. Embora o filme seja ótimo, o livro, como é praxe, é muito superior. Além dos passos de McCandless o autor também destrincha o de outros exploradores modernos, estabelecendo comparações esclarecedores. Krakauer entende profundamente do assunto, é um jornalista especializado no tema e com experiência na área - também quase pereceu no Alasca, portanto traça paralelos com sua vivência pessoal. Por mais que ele tenha conhecimento técnico e o demonstre, em nenhum momento isso torna a leitura árdua. Em suma, um excelente livro-reportagem. O único senão para mim é a Companhia das Letras, uma ótima editora, manter o livro na ortografia anterior a que está em vigor e ainda não corrigir uns pequenos errinhos de revisão. A Cia. das Letras mantém a edição tal como era em 1998, quando teve o insight de adquirir os direitos de publicação no Brasil, e o exemplar que li é de uma reimpressão de 2015, ainda constando como primeira edição, sem qualquer correção. Em 2018 saiu uma nova edição, mas muito parecida com a anterior, ao menos visualmente; espero que a ortografia tenha sido atualizada e os erros corrigidos. Se não for o caso, este ano eles têm uma boa oportunidade para o fazê-lo, devido a uma efeméride: em agosto fará trinta anos que Christopher McCandless morreu no tristemente notório ônibus escolar perdido no remoto Alasca.

Daniel Souza Luz é escritor, professor, jornalista e revisor



Monday, March 14, 2022

A Bagagem do Viajante, de José Saramago (resenha)

Esta resenha foi publicada no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 12 de março de 2022. É uma versão reescrita da crítica que escrevi originalmente no Good Reads em 2019; vali-me dela para lembrar que neste ano será comemorado o centenário de nascimento de Saramago. Eu mesmo revisei o texto, ou seja, talvez algum dia ele precise que outra pessoa o revise para identificar erros que meu olhar já cansado não percebeu.    

Em 16 de novembro deste ano comemorar-se-ão os cem anos do grande escritor português José Saramago, o único ganhador do Prêmio Nobel de Literatura que escreveu em língua portuguesa. Ele venceu a premiação em 1998 e faleceu em 2010, autoexilado na ilha espanhola de Lanzarote. Comunista e pouco afeito a convenções, ele não se conformou com a censura política do governo português, em 1992, ao seu livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo, lançado no ano anterior. É de se imaginar que seu centenário ensejará a republicação de sua vasta obra e até mesmo de inéditos, embora até aqui não tenha visto nada neste sentido. Seria de bom alvitre, pois sua gramática própria e difícil, que engendrou um estilo personalíssimo inconfundível, com certeza afastou leitores jovens quando ele estava vivo – recordo-me até de uma reportagem da revista Trip que afirmava que a juventude portuguesa à época não o lia, preferindo António Lobo Antunes, autor de Os Cus de Judas, também tido em alta conta pela crítica especializada. Agora seria uma ótima oportunidade de redescobri-lo. Meu primeiro contato com a obra de Saramago não foi muito proveitoso, por exemplo. Conforme lia este livro de crônicas, que foi presente de uma amiga, dei-me conta de que já havia começado a lê-lo em 1996, quando o comprei numa livraria no campus da Unesp em Bauru, esperançoso de ter uma ótima leitura, dada a reputação do Saramago. Mas detestei-o e o deixei de lado. Não guardei na memória o título e como ele foi relançado com uma capa diferente, nem de longe tão bonita quanto à da edição lançada nos anos noventa, não percebi, a princípio, que se tratava do mesmo livro. Lendo-o agora, tendo mais paciência, devido à idade, notei que não é tão ruim assim. Não fiquei com nenhum ranço do Saramago; naquela década mesmo, ainda jovem, li O Conto da Ilha Desconhecida e achei ótimo. Meu problema com este livro é que a crônica brasileira é ótima, uma tradição que provavelmente é inigualável. Saramago tem a mão pesada demais para o gênero; pesadíssima, aliás. Ele diz que tem um tom "doce-amargo" nas suas crônicas; balela, são apenas amargas mesmo e, principalmente, maçantes. Há algumas lindíssimas (A minha subida ao Evereste, As terras, Os portões que dão para onde?) e lê-se o livro na expectativa que se repitam outros momentos sublimes como estes em meio a tantos queixumes chatíssimos, mas eles não vêm, simplesmente não vêm. Felizmente, valeu a pena chegar ao fim: a última, A perfeita viagem, é tão inspirada quanto aquelas que me encantaram.

Daniel Souza Luz é jornalista, escritor, professor e revisor

A capa da edição brasileira dos anos 1990 de A Bagagem do Viajante, a qual menciono no texto como sendo mais bonita do que a reedição. 




Wednesday, March 09, 2022

Cursinho comunitário Educafro prorroga inscrições para a turma de 2022

Distribuí este release para a imprensa local em quatro de março de 2022.

O cursinho pré-vestibular comunitário Educafro em Poços de Caldas prorrogou suas inscrições para a turma de 2022. Devido às dificuldades dos candidatos com o formulário online, será feita mais uma semana de inscrição, mas desta vez presencial. Portanto, os interessados podem se dirigir até a sala 22 do IFSuldeminas, das 19:00 às 22:00, de 07/03 a 11/03, ou seja, de segunda a sexta-feira da semana que vem. Os documentos necessários para efetivar a inscrição são comprovantes de renda familiar (cópias de holerites, por exemplo) e uma foto 3x4. O IFSuldeminas está localizado à Avenida Dirce Pereira Rosa, 300, bairro Jardim Esperança. Também é obrigatório que o candidato apresente comprovante de pelo menos duas doses de vacinação contra a Covid-19 e que use máscara na sala de aula.

Neste ano as aulas voltarão a ser presenciais, em uma sala cedida pelo campus local do Instituto Federal do Sul do Minas (IFSuldeminas), na Zona Sul, após terem sido feitas de forma remota durante todo o ano passado. As inscrições são gratuitas e mesmo as de forma online permanece aberta até este domingo, dia 06/03, através de formulário disponibilizado na página Educafro Poços de Caldas no Facebook.

As aulas, portanto, foram postergadas e terão início em 14/03. A aula inaugural será ministrada por Maria José de Souza, a professora Tita. O curso é destinado a estudantes de baixa renda provenientes do ensino médio da escola pública ou com bolsa integral em escolas particulares. A seleção será feita em 14/03, seguindo não só critérios socioeconômicos, mas também étnicos e de idade; ou seja, ser negro, indígena e/ou estar há mais tempo longe das salas de aula conta para ser selecionado prioritariamente, pois o curso tem caráter inclusivo. Outras minorias tradicionalmente alijadas do mercado de trabalho e com dificuldades para ingressar no mundo acadêmico, como pessoas com deficiência ou a população LGBTQIA+, também têm prioridade. Apesar de ser formalmente ligado aos franciscanos, o curso é laico, não sendo a religião, ou mesmo a ausência dela, critério para a seleção. Todos os professores e coordenadores são voluntários.

 O Educafro é um movimento social que atua em rede; foi fundado pelo Frei David Santos na Baixada Fluminense, no município carioca de São João do Meriti, em 1993. Por isso o cursinho possui, em sua grade, a disciplina Cultura e Cidadania, na qual são abordadas questões sociais como identidade de gênero, racismo, homofobia, transfobia, sexismo, capacitismo, direitos reprodutivos e outras temáticas relativas aos Direitos Humanos. O núcleo do Educafro em Poços funciona desde 2003 e chama-se Laudelina de Campos Melo, batizado em homenagem à poços-caldense que foi a fundadora do primeiro Sindicato de Domésticas do Brasil.

Caso o candidato seja aprovado na seleção, há uma colaboração anual de R$ 50,00, que pode ser paga a qualquer momento e é usada para manutenção do curso e materiais para os alunos. Não são cobradas mensalidades. Mais informações sobre o voluntariado ou as inscrições podem ser obtidas por mensagem de Whatsapp ou ligação para 98838-9741 (José Mário) ou 98803-3526 (Tiago). Além disso, o e-mail pocos.educafro@gmail.com ou a página no Facebook: Educafro – Poços de Caldas também estão disponíveis para dirimir dúvidas.

Texto: Daniel Souza Luz

Revisão: Juliana Gandra              

Foto: Diogo Lira

Arte do flyer virtual: Ricardo Senegal





Monday, March 07, 2022

Candyman, de Clive Barker (resenha)

Esta resenha foi publicada originalmente no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em cinco de março de 2022. O texto não passou por nenhum tipo de revisão; notei ao relê-lo que há muitas orações intercaladas longas e tortuosas, portanto, talvez o reescreva algum dia.  

Clive Barker é um nome muito conhecido entre os fãs de terror devido, primariamente, à série de filmes Hellraiser, baseada no seu livro Hellbound. Candyman é um conto da mesma época deste livro; ambos são de meados dos anos 1980. Foi publicado no Brasil, oportunamente, pela Darkside Books em um livro que conta com um ótimo posfácio do jornalista Carlos Primatti. Lançado em uma coletânea, a escolha deste formato, publicado individualmente, deve-se provavelmente à recente adaptação cinematográfica dirigida por Nia DaCosta, lançada no ano passado, e surpreendentemente roteirizada pelo genial Jordan Peele, conhecido por ser um humorista ácido. Uma série de três filmes já havia sido produzida nos anos 1990, tomando uma série de liberdades em relação à trama original, conforme explica Primatti. Uma delas, também utilizada na adaptação cinematográfica da HQ Hellblazer, do emblemático John Constantine, personagem criado por Alan Moore, é migrar a história da Grã-Bretanha para os Estados Unidos. Neste caso, o filme Constantine saiu terrivelmente descaracterizado. Não vi nenhum dos Candyman, mas se os diretores foram talentosos, eles tinham um ótimo material em mãos, fácil de adaptar. Barker sempre foi multimídia, desde cedo. Na Unicamp vi um curta-metragem que ele estrelou e dirigiu nos anos 1970; ele dirigiu também longas e clipes; as HQs adaptadas de Hellraiser, feitas por grandes nomes como Ted McKeever e publicadas no Brasil no início dos anos 1990, são as melhores que já vi adaptadas de uma obra cinematográfica, pois não se propõem a recontar a história dos filmes, mas sim levar seus personagens para épocas e situações distintas, pois são seres demoníacos intemporais. Aliás, este é o mesmo expediente de Candyman: embora chamado de demônio no livro, ele não é exatamente isso, assim como também os cenobitas sadomasoquistas do Hellraiser não são diabos da concepção cristã. Suas vítimas não são escolhidas a esmo para ser atormentadas, elas é que os procuram. No caso de Hellraiser, é através de um dispositivo; em Candyman, é a curiosidade mórbida da protagonista Helen Buchanan, acadêmica enfastiada com a arrogância de seus pares e com a indiferença do seu infiel marido, Trevor. Ao duvidar das histórias de massacres e crueldades de Candyman, ela acaba por invocá-lo. Barker é um narrador muito envolvente; no começo parece que estamos diante de um romance policial. Não há nenhuma invocação baseada em clichês como pentagramas; é a busca obcecada da protagonista por histórias que não fazem parte do seu objeto de pesquisa que acabam por levá-la à senda sinistra da qual seria poupada se deixasse de lado os rumores que ouviu. A imprudência de Helen, ao fazer uma pesquisa de campo sobre pichações e grafites num conjunto habitacional abandonado pelo poder público que o inaugurara com pompa três anos antes apenas para vê-lo tomado por heroinômanos e muita pobreza, desde o princípio a põe em situações de risco. A ameaça está sempre presente, mas ela não parece pressenti-la, ao menos não no seu sentido sobrenatural. Barker deve ter sido influenciado por Lovecraft, pelo pouco que li deste: faz descrições precisas e constrói um clima que se revela lentamente, no qual o inefável e o inelutável estão constantemente à espreita.

Daniel Souza Luz é jornalista, professor, escritor e revisor



Friday, March 04, 2022

Amor estranho é que faz o mundo girar

Este miniconto foi publicado na página oito do Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em 26 de fevereiro de 2022. É uma versão traduzida e com mudança no foco narrativo de um miniconto que escrevi originalmente em inglês nos idos de 2007. 

Ela estava furiosa com ele. Não importava o que ele dissesse, ela fica mais irritada. Então ele foi embora de vez. Ainda tinha alguns arrependimentos, mas às vezes somos obrigados fazer más escolhas. Dois meses depois de vagar pelo campo, dormindo em bancos e implorando por comida quando suas economias se esgotaram completamente, decidiu voltar para casa. Ela desapareceu. Na cozinha, tomando um café enquanto procurava comida que ainda estava dentro do prazo de validade, ele ligou o noticiário e ouviu falar de uma pitbull que foi morta a tiros após atacar um idoso em uma cidade vizinha. Era ela; sentiu no seu coração.

Daniel Souza Luz é jornalista, escritor, professor e revisor

Foto reproduzida via licença Creative Commons. A original está aqui.